O homem que viva na selva

“No dia seguinte, por volta das sete e meia da manhã, todo o grupo se encontrou na agência e depois de termos deixado lá as nossas malas, que iriam de carro até ao lago Inle, metemo-nos a caminho de uma nova aventura. Como tínhamos escolhido o trekking de dois dias em vez do de três, fizemos a primeira parte do trajeto de tuk-tuk, cerca de vinte quilómetros, e só depois é que começamos a verdadeira caminhada. Éramos um grupo de oito pessoas e tirando um casal de alemães de sessenta e tal anos, éramos todos viajantes a solo, na faixa dos vinte e tal anos.

Estávamos a caminhar há uns trinta minutos quando o nosso guia nos perguntou se poderíamos fazer uma pausa na aldeia seguinte, pois essa era a aldeia da avó dele e assim aproveitava para lhe fazer uma visita. Todos acedemos e uns minutos depois lá chegamos a uma pequena aldeia, com meia dúzia de casas de pedra e madeira. Ficámos à sombra enquanto o nosso guia visitou a avó, que já tinha, segundo ele, mais ou menos noventa e cinco anos. Assim que o guia regressou, eu e mais um rapaz do grupo, o Sam, encetamos conversar com ele.

– Então, você mora muito longe daqui? – perguntei-lhe.

– Eu moro, moro na selva – respondeu o nosso guia.

– Como assim? Na selva?

– Eu sou órfão e os órfãos vivem na selva. Vivo lá desde os dez anos. A minha mãe faleceu queimada numa fogueira, durante a festa da lua cheia.

Tanto eu como o Sam ficamos a olhar um para o outro, sem entender muito bem qual o conceito de viver na selva. Claro que é teoricamente possível viver na selva, mas em que condições é que se vive na selva?

– Porque é que não vive aqui com a sua família?

– É muito caro viver na aldeia, não tenho condições para isso.

Virei-me para trás e olhei novamente para aquele pequeno conjunto de casas perdido no meio das montanhas, tentando imaginar como é que poderia ser caro morar ali. Nem me atrevi a perguntar o quão caro poderia ser.

– É uma tradição. Os filhos órfãos saem da aldeia e vão para a selva viver. Vivo lá com mais umas cinco ou seis pessoas – explicou o guia.

Menos mal. Assim, de certa forma, eles próprios criam também uma espécie de comunidade, pensei eu.

– Então, mas hoje de manhã, quando chegamos à agência você já lá estava. Como é que foi pra lá?

– A pé. São mais ou menos três horas de distância até Kalaw. Às quatro da manhã fiz-me à estrada.

– Já trabalha há muitos anos aqui nos trekkings?

– Há cinco anos, conheço estes caminhos como a palma da minha mão. São a minha casa.

– E como é que aprendeu a falar inglês?

– Em Kalaw, nas agências de turismo. Ficava lá à porta e ouvia as pessoas conversarem. Aqui há uns anos, um restaurante da cidade comprou uma televisão. Metia a cabeça na coluna e ficava a ouvir os relatos dos canais ingleses para aprender.

– E não gostava de morar lá em Kalaw? Ou aqui na aldeia da sua avó?

– Não, não consigo. É muito barulho, muita confusão e é muito caro comer. Na selva é tudo de graça.

O inglês dele não era o melhor e houve muita coisa que não consegui perceber. Claro que, em teoria, sabemos que há pessoas que vivem em contextos muito diferentes do que o nosso, umas com condições muito piores, outras melhores. Porém, nesta conversa, senti muitas vezes que aquilo que o guia dizia saía do meu raio de compreensão. Eu tinha a noção de que havia aldeias muito pobres, onde as pessoas nem sempre tinham onde comer, mas viver na selva e caminhar três horas pela selva adentro, a meio da noite, para ir trabalhar, estava fora daquilo que para mim eram diferentes contextos de vida. O nosso guia era um autêntico homem da selva e o mais curioso é que isso era notório na maneira como andava, como se comportava e até como falava. Era um homem de poucos sorrisos, que raramente levantava a cabeça.

O nosso guia

Foi então que o Thomas, um holandês que fazia parte do grupo, perguntou ao guia se era verdade que o Myanmar estava dividido em partes brancas e partes pretas. Aparentemente, as partes brancas correspondiam a zonas seguras, onde os turistas podiam circular; já as zonas negras eram propícias a ataques armados onde os turistas não podiam sequer entrar. Eu já tinha percebido que o país não estava propriamente a atravessar um momento pacífico, mas ainda não tinha entendido bem o que se estava a passar. E, embora ouvisse várias vezes um burburinho sobre o assunto, ainda não tinha conhecido ninguém local que quisesse realmente tocar nesse tema. Foi então que o Sam me disse que o país estava em guerra civil, que vários grupos dissidentes se confrontavam diariamente em prol dos seus interesses. O caso mais grave e mediático dizia respeito à minoria étnica rohingya, que estava naquele momento a refugiar-se no Bangladesh.

O guia acalmou-nos e disse-nos que toda aquela zona era segura, que estávamos numa white zone. Porém, o Sam tinha lido alguns relatos na internet de militares armados que apareciam vindos do nada, a meio do trekking. A verdade é que muitas poucas pessoas sabiam o que estava a acontecer no Myanmar e se os países vizinhos não estivessem a receber refugiados, talvez até ninguém soubesse. O governo parecia querer, a todo o custo, abafar o caso.

Depois de duas horas e meia de caminhada, chegamos a uma pequena aldeia totalmente isolada para almoçar. Não havia restaurantes e, portanto, a empresa de trekking pagava um determinado valor às pessoas da aldeia para nos receberem em sua casa e para nos cozinharem o almoço. Assim, tiramos os sapatos e entramos dentro de uma das casas. Sentamo-nos no chão, bem ao estilo asiático, em torno de uma mesa onde já estavam os pratos e talheres. Dois rapazinhos, que assumo serem filhos dos donos das casas, cumprimentaram-nos e começaram a servir-nos – sopa (ou chá com uma colher ?!), massa com legumes, um terço de omolete para cada um. Estava delicioso.

O nosso almoço, numa aldeia no meio das montanhas

Foi então que comecei a conversar com duas raparigas que também faziam parte do grupo – a Eleonora, italiana e vegetariana que não gosta de legumes, e a Zita, uma irlandesa que vivia na Índia. Porém, tivemos de nos despachar e de nos fazer a caminho, pois o sol punha-se por volta das cinco da tarde e já deveríamos estar, a essa hora, resguardados no mosteiro onde passaríamos a noite. Assim, continuamos a caminhada – a paisagem, essa, fazia-me lembrar Portugal. Não havia grandes montanhas e o solo era árido, seco, com algumas árvores a nascer aqui e acolá. Parecia o alentejo, só faltavam as azinheiras. Fazia calor, principalmente depois de almoço e, depois de uma hora de caminhada, já estávamos a pedir ao guia para fazer uma pausa.

            Acabamos por parar novamente junto a um rio onde poderíamos tomar banho, caso quiséssemos. Mas a água estava gelada e por isso ninguém quis. Sentámo-nos e aproveitamos o momento. Dois rapazinhos nus viram-nos e vieram ter connosco – não para brincar, mas apenas para olhar para nós. Tinham um búfalo com eles e depois de terem perdido o interesse nos nossos rostos brancos foram brincar com o búfalo para o rio. Reparamos então que eles deveriam estar com os pais, que estavam do outro lado do rio – os homens estavam a construir carroças de madeira, que prendiam nas costas das vacas, enquanto as mulheres estavam a tomar banho no rio e a lavar a roupa. Acredito que este momento tenha sido, para todos nós, cénico. Durante uns bons minutos nenhum de nós falou e todos observámos aquilo que sucedia à frente dos nossos olhos – era a vida a acontecer, no seu esplendor, para aquelas pessoas, dentro dos moldes daquele lugar. Foi a perceção de que nem todos temos o mesmo estilo de vida e nem sempre isso é propriamente uma escolha, nem mesmo para nós, que vivemos em países mais desenvolvidos. E que, ainda assim, aquela vida não precisa de ser propriamente má, podendo até ser, em certos aspetos, melhor que a nossa.

            O Myanmar é um país pobre, mas à primeira vista não parece ser tanto quanto é. Foi o país cujos valores de PIB per capita e índice de desenvolvimento humano foram os mais baixos de entre todos os que já tinha visitado. Porém, quando se visita o país, isso não é claro – por exemplo, ao contrário do Laos, o Myanmar tinha estradas de alcatrão, ruas cimentadas, lojas e restaurantes mais “oficiais” do que o Laos e o Camboja. Contudo, isso não se refletia nos seus parâmetros económicos. Foi durante o trekking, quando saímos dos meios urbanos e nos debruçamos na vida rural, que essa disparidade ficou mais patente – para umas zonas serem mais evoluídas, as outras têm, forçosamente, de ser muito menos desenvolvidas, para justificar os baixos valores. Além disso, o Myanmar é um país muito grande, com sessenta e cinco milhões de habitantes, e o turista normal só tem acesso a áreas muito restritas, o que torna difícil de obter uma imagem fidedigna. No fundo, foi aqui que tivemos uma perspetiva mais real do país.

            Durante o resto do percurso já estávamos completamente estafados – os nossos pés doíam e os gémeos pediam descanso. Cerca de duas horas e meia depois da paragem no rio, chegamos, finalmente, ao mosteiro onde iríamos passar a noite. Mas, antes de entrarmos, fizemos uma pequena pausa numa barraca, onde uma senhora vendia garrafas de água. A água da torneira não era potável e não havia supermercados e, por isso, aquela senhora era a única pessoa que tinha água engarrafada. Cada um comprou tantas garrafas quantas conseguia carregar e sentámo-nos à sombra a descansar.

O mosteiro onde dormimos

            Essa senhora morava numa casa junto ao mosteiro e tinha montado um barraco à entrada, justamente para vender água. Junto a si tinha um bebé com menos de um ano, que balbuciava umas sílabas para nós.

            – Meu Deus, como a vida aqui consegue ser simples – comentou a Zita.

– É verdade, é tão diferente. Há tempo – disse eu.

– Não há ruído, não há barulho, não há confusão – rematou a Eleonora, enquanto bebia um trago de água fresca.

– Parecem ser todos tão felizes. Será que são? – perguntou o Sam.

– Não sei, não sei em que condições vivem. Em teoria, se tiverem e assegurarem as necessidades básicas de vida podem ser tão ou mais felizes do que nós. Isto é, deixa de haver uma relação direta entre aquilo que se tem e o quão feliz se é – disse eu.

– Precisamente. Claro que não posso afirmar se são ou não felizes. Mas lá que parecem ser, parecem.

– Seja como for, algumas delas mostram que realmente nós não precisamos de tudo o que temos. Temos demasiadas coisas, lutamos para ter outras tantas que realmente não precisamos. Se não vivêssemos tão focados no ter, mas mais no ser, seríamos bem mais felizes. Foi uma das grandes lições que tirei depois de ter vivido na Índia – disse a Zita.

Todos nós que ali estávamos queríamos, por vezes, baixar o ruído da nossa sociedade, baixar os níveis de confusão, individualismo e consumismo. Todos nós queríamos, por vezes, viver num mundo menos fácil, menos barato, menos influenciado. E todos nós, por vezes, invejávamos a vida daquelas pessoas – tão pacatas, tão serenas, cheias de sorrisos e pessoas. Todos nós concordávamos com a Zita, mas também todos nós estávamos demasiado exaustos para avançar com a conversa.

O lugar onde dormimos, no mosteiro

       Entramos assim no mosteiro onde iríamos jantar e pernoitar. Mas o nosso grupo não seria o único a dormir lá, já que a nós juntar-se-iam mais outros quatro grupos, de outras empresas de trekking. Curiosamente, durante todo o dia, não nos cruzamos com nenhum deles. Dentro do pátio do mosteiro estavam uns lençóis pendurados, que faziam de paredes e que dividiam o átrio em pequenas áreas, cada uma para um grupo de trekking. Na área correspondente ao nosso grupo estavam dispostos no chão dez colchões, juntos uns dos outros, com várias mantas e cobertores. Cada um de nós escolheu a sua cama e, depois de termos descansado por uns instantes, fui com as raparigas até à casa de banho, ver se era possível tomar banho.

            As casas de banho ficavam do lado de fora do mosteiro, ao ar livre. A área destinada ao banho era constituída apenas por uma parede, que separava o mosteiro do mato, e por uma espécie de tanque, onde tinha a água e alguns baldes pequenos. Contudo, o tanque não tinha água suficiente para tomar banho. Além disso, já eram quase seis da tarde, estava a anoitecer e por isso já era demasiado frio para tomar banho de água fria. Ninguém se importou. Afinal de contas, amanhã à tarde já estaríamos em Inle e já nos poderíamos lavar. Estávamos a lavar os dentes e a trocar de roupa quando duas miúdas entram na casa de banho, como quem diz contornaram a parede, olharam para a água que estava no tanque e começaram a discutir em hebreu. Assim que foram embora, a Yale, que era israelita e percebia o que elas tinham dito, contou-nos que as miúdas estavam a resmungar pela falta de condições do mosteiro. Ao que parece, havia-lhes sido dito que poderiam tomar banho e, assim que chegaram, depararam-se com aquelas condições. E parece que as suas críticas não ficavam por aí já que as camas e o almoço também não tinham sido do seu agrado. Fiquei furiosa com isto.  Num ápice, veio-me à memória a minha passagem por Sapa e a minha reflexão sobre o facto de os locais providenciarem aos turistas condições que eles próprios não podem ter e o quanto isso me magoava. Fiquei revoltada, chateada e profundamente magoada com a atitude delas. 

            Por volta das sete da noite fomos jantar – no átrio estavam dispostas várias mesas redondas, uma para cada grupo, e fomo-nos então sentando na mesa que nos estava destinada. O nosso guia foi-nos trazendo vários pratos que colocávamos no centro da mesa para nos servirmos. Havia sopa de tomate, arroz, legumes salteados, meio ovo cozido para cada um, chá e bolachas.

O nosso jantar

Numa das vezes em que o guia nos trouxe os pratos, perguntei-lhe se não queria sentar-se ali, para jantar connosco.

            – Não, depois eu como – respondeu-me o guia.

            – Depois quando? – perguntei.

            – Mais tarde, mais tarde – disse ele, de cabeça baixa, não mostrando intenções de continuar a conversa.

            – Vai dormir connosco no átrio?

            – Não.

            – Então dorme onde?

            – Onde houver espaço. Às vezes na cozinha, outras vezes por aí. Onde houver espaço – disse ele, antes de ter ido embora de novo para a cozinha, sem sequer me dar oportunidade de responder.

            Uma vez mais, o mesmo sentimento, a mesma sensação de desconforto. Eles fazem um esforço para nos dar mais condições a nós do que aquelas a que eles próprios têm acesso. Depois de comer fomos todos dormir. Estávamos exaustos e o dia seguinte prometia ser longo.”

In capítulo 6, Solo

Uma das pessoas mais atípicas que conheci

1 comentário em “O homem que viva na selva”

  1. Ótimo texto! Adorei a história, gosto muito destas tuas histórias. Acompanhei a viagem quase toda e sabe bem saber algumas destas situações por que passaste, ainda mais a tua perspetiva!
    Boa sorte, gosto muito do blog!

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