Um passaporte para a liberdade

Talvez daqui a 20 anos os nossos filhos nos questionem sobre como é que tivemos coragem de ir trabalhar depois de ver dezenas de pessoas a morrer no Mediterrâneo, às portas da Europa. Como é que lhes vamos explicar que viramos a cara e fizemos de conta que não era um problema nosso?

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EPA/MASSIMO PERCOSSI

Era dia de Natal do ano de 2019 quando, por meio de um scroll no Facebook, fui obrigada a parar perante um comentário invulgar. Era uma publicação de uma organização não-governamental (ONG) que dava conta das condições precárias em que milhares de pessoas (sobre)vivem num dos maiores campos de refugiados da Europa. Aquilo que me prendeu à publicação foi não o seu teor, para o qual infelizmente já estava calcetada, mas sim um comentário ao mesmo: “Please help us, we are dying” (Por favor ajudem-nos, estamos a morrer). Fiquei estagnada. Que mundo é este onde, no conforto do nosso lar, à lareira de um frio dia de Natal, somos invadidos por uma realidade tão cruel quanto desumana?

Abri o perfil da pessoa que escreveu este apelo, fiz-lhe um pedido de amizade e enviei uma mensagem. Foi este o mote que me levou a conhecer Alie, um rapaz de 20 e tal anos, da Serra Leoa, que estava há cinco meses no campo de refugiados da ilha grega de Samos. À semelhança de todos os que lá estavam, aguardava a possibilidade de poder efectuar um formal pedido de asilo que lhe abriria as portas para o tão desejado continente europeu.

Tinha saído da Serra Leoa em direcção à Guiné, por terra, e de lá para o Irão. Sem um visto legal para permanecer em terras iranianas, foi encarcerado. Permaneceu na prisão durante duas semanas, sob condições que prefere não descrever. Foi então que o Governo iraniano o conduziu até à fronteira com a Turquia, onde o descarregou como se de uma carga se tratasse. Apesar de a Turquia ser um país relativamente seguro e que tem vindo a conceder vários vistos de refugiados nos últimos anos, os direitos concedidos a estas pessoas não lhes permitem ter uma vida digna. Um migrante na Turquia não pode ter um contrato de trabalho nem assinar um contrato de arrendamento. É uma forma de o Governo garantir que estes não ficarão por muito tempo. Face a estas condições, Alie fez aquilo que milhares de migrantes fazem todos os dias: atirou-se para um barco de borracha e esperou que o mar o conduzisse para um porto europeu. O sonho é o de uma vida melhor, mas longe estão estas pessoas de imaginar o inferno que as espera nos campos de refugiados europeus.

Depois de perceber que rota tinha tomado, fui impelida a perguntar-lhe por que razão tinha fugido. E foi aí que senti uma tensão a tomar conta de si. O rapaz fechou-se em copas, ao mesmo tempo que tentava esquivar-se da pergunta. Após transmitir-lhe alguma confiança, explicou-me que era homossexual, condição que na Serra Leoa é punida com pena de morte. Os pais tinham morrido num acidente de carro e vivia com um tio. Assim que este descobriu a sua condição, denunciou-o às autoridades e atacou-o em praça pública de uma forma que Alie preferiu não descrever. Desde então que era perseguido pela polícia e estava em fuga.

Engoli em seco a história de Alie. Esperava uma explicação bem mais sangrenta, como ter fugido de um confronto armado ou de uma situação de guerra. Não imaginava que ser homossexual poderia ser a força motriz que levaria alguém a fugir do seu país.

O barco que levava Alie foi interceptado por uma ONG que os resgatou e os encaminhou para o Campo de Refugiados de Samos. Na altura este campo contava com 7500 pessoas, apesar de a lotação máxima ser de 3000. O único apoio que tinha vinha por parte de uma ONG que lhe dava uma garrafa de água e um pão por dia. Sem qualquer condição de conforto ou higiene, milhares de pessoas vivem em condições absolutamente desumanas. Tal indigência, aliada aos episódios traumáticos que cada um carrega, constituem a ebulição perfeita para as mais extremas condições psicológicas. Tentativas de suicídio, violência, agressões e ansiedade fazem parte da vida nestes campos. É a vida num sufoco. Todos querem sair dali.

Durante os meses que se seguiram fui trocando mensagens com Alie com alguma frequência. Ora ele me ligava para dar conta de um acontecimento invulgar no campo ou eu o questionava sobre o estado do processo de asilo. Cada vez que lhe enviava uma mensagem, temia pela ausência de resposta. E se ele não me respondesse? Estaria para chegar o dia em que não teria resposta? O dia em que Alie simplesmente sucumbiria àquelas fracas condições? Muitas vezes, no conforto do meu lar, ouvia Alie dizer-me que tinha fome. Ou frio. Ou que estava doente e a fila para o centro de saúde estava em três dias. Pedia-me comprimidos para dormir porque, cada vez que fechava os olhos, era assaltado por memórias que desejava apagar. Vivia em ansiedade extrema, num nível que não conseguia controlar. E eu, a não muitos quilómetros de distância, dava por mim a questionar este estúpido privilégio que nos posiciona na escala da riqueza de uma forma tão aleatória quanto injusta.

Passados cerca de seis meses, já em plena pandemia, ligou-me para dizer que tinha sido convocado para dar início ao pedido de asilo. Nunca antes o tinha sentido tão feliz. Aquele inferno estava a começar a ter um fim. Porém, assim que se deslocou ao escritório, foi informado de que afinal o seu processo só teria início na semana seguinte. E na semana seguinte disseram-lhe para voltar dali a duas semanas, e depois um mês. E com o tempo foi-se perdendo a esperança. Assim se brinca com a esperança destas pessoas, como se de marionetas se tratassem. Estas promessas, atrasos e prorrogações estenderam-se por mais seis meses.

Já Alie estava no campo há um ano e meio quando foi chamado para fazer uma entrevista. Esta etapa constitui a prova de fogo para qualquer requerente de asilo: é aqui que têm de demonstrar, com toda a persuasão possível, que correm risco de vida nos seus países de origem. São incitados a partilhar os motivos que os levaram a fugir e a resgatar os episódios traumáticos que alavancaram a fuga. Só assim são elegíveis para um visto de refugiado.

Durante algumas semanas treinei a entrevista com Alie. Dei-lhe algumas indicações sobre a possibilidade de lhe fazerem a mesma pergunta de diferentes formas ou do típico esquema do polícia bom/polícia mau. Não o incitei a mentir, mas convenci-o a exacerbar largamente os episódios mais negros que tinha vivido na Serra Leoa. Apesar de já sermos relativamente próximos, era muito difícil penetrar nesta parte da vida do Alie. Ele tinha vergonha de ser homossexual e muita dificuldade em explicar que tipo de situações sofreu no seu país. Após a entrevista, tinha à sua frente mais um longo período de espera. Como se os anteriores não tivessem sido suficientemente longos, suficientemente negros.

Seis meses depois, dois anos depois de ter dado entrada no campo, recebo no meu telemóvel uma mensagem de Alie. Estava deitada no sofá quando recebi uma fotografia do seu novo cartão de identidade. Alie era, oficialmente, um cidadão grego, um cidadão da União Europeia, com todos os direitos que lhe são inerentes. Com todos os direitos que qualquer cidadão deveria ter assim que nascesse. A sensação de ver aquele cartão foi absolutamente arrebatadora. As lágrimas escorreram-me pelos olhos antes que eu tivesse tempo para as conter. Mais feliz estava, como é evidente, Alie. Aquele cartão era o passaporte para a liberdade que lhe permitiria construir uma nova vida. Poderia agora sair do campo, obter um contrato de trabalho, abrir uma conta bancária e receber um salário digno. Algo aparentemente tão simples, mas que é condição necessária à vida nos dias de hoje. Durante muito tempo, tempo a mais, não vimos o fim daquele pesadelo. As notícias eram sempre más. As mensagens que recebia eram sempre negativas. Muitas vezes encontrei Alie desesperado, num limbo entre a vida e a morte onde ninguém merece estar. Tantas vezes me disse arrepender-se de se ter metido naquele maldito barco.

Naquele momento senti-me absurdamente feliz e grata. Foram tantas as vezes em que questionei as minhas lutas, em que coloquei em causa as minhas crenças e em que me perguntei se tudo isto valeria a pena, que este episódio conjecturava em si a certeza de estar no caminho certo.

Porém, depois do entusiasmo inicial, denotei em Alie uma certa tensão. “E agora?”, perguntou-me. “Para onde é que eu vou?”. O caminho até ali tinha sido tão martelado que naquele momento só me passava pela cabeça festejar. Mas Alie tinha ainda muitos medos e traumas que o impediam de celebrar com tanta avidez como eu. Sugeri-lhe que, ainda em Samos, contactasse com uma das ONG que providenciava apoio aos migrantes no campo. Foi assim que se inscreveu num site de trabalhos temporários. Volvidas duas semanas, o rapaz serra-leonês deixava assim a ilha de Samos, rumo à ilha grega de Chania, onde tinha à sua espera um trabalho temporário numa cadeia de hotelaria. Durante os três meses seguintes tinha então assegurado um trabalho, um lugar para dormir e três refeições por dia. Alie tinha, finalmente, o mundo na mão.

Presumimos nós.

Apesar de as condições de vida de Alie terem melhorado consideravelmente, haverá ainda um longo caminho para percorrer, que talvez nunca venha a ser feito. Refiro-me à dimensão psicológica e às consequências que advém deste tipo de experiências perturbadoras. Actualmente, Alie só tem mais um desejo: construir uma família. Tradicional. Apesar de estar hoje num país seguro, onde a sua orientação sexual não é determinante para o futuro, não consegue largar-se do passado. Para Alie, a culpa de tudo o que sofreu deve-se à sua orientação e, portanto, reprime fortemente a sua sexualidade. É algo que quer esquecer, deixar para trás, ainda que com isso deixe para trás também um pouco de si.

Vivemos tempos em que urge uma maior consciencialização social. Em consonância com um mundo cada vez mais conectado e globalizado, as paredes que nos separam deveriam desmoronar-se ao invés de se engrandecerem. É necessário reflectirmos acerca do nosso papel enquanto cidadãos europeus e do poder que cada um de nós encerra. Da mesma forma que, actualmente, questionamos a integridade de todas as pessoas que, durante o Holocausto, tinham conhecimento das atrocidades cometidas nos campos de concentração, talvez daqui a 20 anos os nossos filhos nos questionem sobre como é que tivemos coragem de ir trabalhar depois de ver dezenas de pessoas a morrer no Mediterrâneo, às portas da Europa. Como é que lhes vamos explicar que viramos a cara e fizemos de conta que não era um problema nosso? Como é que lhes vamos explicar que sacudimos a nossa responsabilidade social para cima da classe política?

Apesar de a Declaração Universal dos Direitos Humanos ter sido assinada em 1948, a luta pelos direitos humanos é uma das grandes batalhas do século XXI. E esta é uma luta que diz respeito a todos aqueles que dela usufruem, a todos os seres vivos capazes de ter consciência dela. E, enquanto todos, sem excepção, não nos podermos orgulhar dos direitos que nos assistem, esta luta não terá fim.

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