Há um ano atrás estava em êxtase. Estava, por esta hora, a entrar dentro do avião que me traria de volta a casa, quase nove meses depois dela ter saído. Ainda tinha pela frente umas vinte horas entre aviões, portas de embarque e aeroportos. Lembro-me de ter querido refletir e escrever sobre o que estava a sentir e de não ter conseguido, de tão embrenhada que estava naquele momento. Tremia por todos os lados e não conseguia comer. Queria ir, queria muito ir, mas também queria tanto, mas tanto ficar. Era um sentimento agridoce – por um lado ia abraçar a minha família e os meus amigos, o meu núcleo forte, as minhas pessoas, mas, por outro, ia regressar a uma vida que já não me servia, a uma casa que já não me pertencia. A minha casa era agora o mundo e a minha vida, essa, continuava por aí, a vaguear e a deslumbrar-se com as histórias dos outros, sem saber muito bem que rumo tomar. Tinha muito, mas muito medo de voltar. Enquanto toda a gente achava que eu tinha superado um grande desafio por ter sido capaz de viajar sozinha, para mim o desafio estava só agora começar – e era voltar para casa. Como é que se regressa de uma viagem destas? Como é que regressas aos dias normais, às conversas superficiais, aos problemas insignificantes? Depois de 254 dias alucinantes, estaria preparada para 254 dias iguais? Eu sabia que já não era a mesma pessoa que era quando saí daqui. Não sabia ainda quem era, mas sabia que já não era a mesma. E sentia que, de uma forma ou de outra, ia voltar para uma vida que já não era a minha, que já não me servia. Ia voltar para a vida que deixei ficar para trás naquela manhã de outubro. Era um sonho que estava a terminar.
Passou um ano. Passou um ano e às vezes ainda me custa acreditar que fui capaz de fazer isto. Olho para trás, para as memórias e histórias que vivi e parece que foi tudo um sonho, está lá tão longe … tão irreal.
O regresso foi arrebatador. Voltei com um estilo de vida muito simples com perceções muito básicas e cair de novo nesta realidade foi fraturante. Eu estava completamente desabituada de uma série de coisas comuns. Há mais de oito meses que eu não discutia com ninguém e, nas primeiras vezes em que me vi em situação conflituosas fechei-me em copas. Senti que não tinha defesas nenhumas para lidar com confrontos pessoais e estava muito mais sensível àquilo que os outros me diziam. Qualquer coisa que dantes me era indiferente passou a magoar-me mais. Chorei mais, magoei-me mais e fiquei mais triste.
Ter três e quatro pessoas a falar comigo ao mesmo tempo, foi também algo que me fez muita confusão nos primeiros dias. Por muitas pessoas que tivesse conhecido e amizades que tivesse feito, estive muito tempo sozinha e a algazarra e o alarido típico de um conjunto de pessoas custaram-me um pouco no início. Ouvir música alta, fazer duas e três coisas ao mesmo tempo ou simplesmente ser despachada, foram coisas que não consegui fazer imediatamente. Vinha de uma vida muito mais rudimentar e simples, e estava de novo neste ambiente confuso e apressado onde todos tentam fazer mais do que todos. Até o ato de comer foi difícil de gerir, e eu estava cheia de saudades da nossa comida. Durante a viagem eu não tinha horários nem rotinas e vivia ao meu ritmo. Quando voltei tive de regressar para o ritmo desta sociedade. E tudo me parecia em excesso.
Vende-se muito a ideia de que, depois de uma viagem destas, regressamos calmos e serenos, cheios de certezas sobre a vida e o mundo e que vamos andar por aí a espalhar paz e amor. Tenho fortes reservas sobre isso. No meu caso, foi exatamente o contrário. Durante os primeiros dois meses depois do regresso chateei-me com toda a gente – ficava facilmente magoada com certas atitudes e discutia porque as pessoas não eram empáticas, porque não olhavam para o lado, porque não se ajudavam umas às outras, porque não reciclavam e não se preocupavam com o ambiente, porque eram egocêntricas, porque sabiam que havia pessoas a sofrer e não faziam nada, porque não eram gentis, porque se magoavam gratuitamente umas às outras, porque ninguém pedia desculpa, porque sabiam que nem sempre eram justas e não se importavam, porque se achavam superiores aos outros. Só se importavam em ter e fazer coisas – ninguém aqui sabia o que era não fazer nada, não ter nada para fazer e isso chateava-me.
Respondi muitas vezes com raiva e irritação, mais do que aquilo que gostaria. Andei furiosa com o mundo, com a sociedade, sei lá. Com tudo. Não fui flexível e, numa primeira fase, não tive nenhuma capacidade de aceitação. Trazia em mim a imagem de um mundo ideal e quis a todo o custo impô-lo aos outros. Mas não são assim que as coisas funcionam. Senti-me muito sozinha e incompreendida durante este tempo. Afastei-me de algumas pessoas e perdi alguns amigos. Por muito que partilhasse o que tinha visto e vivido, nunca conseguia imprimir na outra pessoa o mesmo grau de intensidade com que eu vivi tal situação. Ninguém viveu o que eu vivi e por isso era normal que ninguém me compreendesse. Demorei algum tempo a aceitar isso e a voltar a enquadrar-me neste mundo. Saí daqui certa do que queria ver e fazer por esse mundo fora, e voltei com a cabeça ao contrário. Sabemos sempre o que queremos fazer no mundo, mas não sabemos o que é que o mundo vai fazer connosco. Hoje acredito que encontrei um equilibro entre a Patrícia que regressou da viagem e a que nunca daqui saíu – não sou a miúda explosiva e intransigente que chegou aqui há um ano atrás, mas também não sou a pessoa que era antes de ter partido. Tive de flexibilizar, de fazer algumas cedências, de procurar adaptar-me a esta vida. Tive de perceber que não vou conseguir mudar o mundo (mas ainda continuo a tentar).
Fui muito feliz durante esta viagem e embora não saiba o que a vida me reserva no futuro, sei que esta será sempre uma das melhores experiências da minha vida. Por muitas mais viagens que faça e por muitos mais países que visite, nunca mais vou ver o mundo com o olhar inocente como o de quem o faz pela primeira vez. Tive a sorte de poder ver o mundo pelo olhar de quem tem vinte e quatro anos. Tudo era para mim uma fonte de inspiração e facilmente me deixava deslumbrar com um sorriso inocente ou uma brisa fresca. Tudo me surpreendia e me dava a volta à cabeça. O mais ínfimo pormenor era suficiente para acalmar a minha sede de mundo. Era como uma criança que estava a ver o mundo pela primeira vez. Tenho perfeita consciência de que provavelmente nunca mais vou poder viajar de uma forma tão livre e plena, sem prazos, pressas ou amarras. Há experiências que só se vivem uma vez na vida e estou certa de que esta foi uma delas. Durante oito meses e meio vivi como quis, de uma forma livre e descomprometida. Fui eu, em paz, com o mundo. Ao meu ritmo. E isso não tem preço.
Muitas vezes me perguntaram se, por estar a viajar sozinha, não me sentia demasiadas vezes só. Creio que a solidão é um sentimento que não está propriamente relacionado com o facto de estarmos rodeados de pessoas – afinal, quantas vezes não nos sentimos profundamente sós no meio de uma multidão? A solidão é um sentimento que, tal como todos os outros, vai aparecendo aqui e ali. Claro que me senti muitas vezes só e na maioria delas não desejei estar, mas também senti muitos outros sentimentos como felicidade, alegria, gratidão ou raiva. São apenas sentimentos que todos nós sentimos pontualmente, quer estejamos a viajar pelo mundo ou a apanhar mirtilos no quintal de casa. Não acho que me tenha sentido só mais vezes do que aquelas que me sentiria se não tivesse saído de Portugal. Inclusive, devo dizer que nunca, em oito meses, me senti tão sozinha como me senti quando regressei da viagem. E curiosamente, foi esta a altura em que mais estive rodeada de pessoas. Aprende-se bastante com o silêncio e a solidão. Os muitos momentos que passei sozinha ensinaram-me a ser boa companhia de mim própria. A ser mais empática comigo mesma – a julgar-me menos, a cobrar-me menos e a rir-me mais dos disparates que me vão passando pela cabeça. Acho que estes momentos me fizeram bem, que me tornaram uma pessoa mais independente e mais sólida, mais segura de si mesma. Por outro lado, o facto de passar largos momentos sozinha levou-me a valorizar mais as alturas em que tinha companhia.
Aprendi também muito sobre mim, nomeadamente sobre a pessoa que eu sou e sobre as razões pelas quais sou assim. Viajar mostra-nos sempre o melhor e o pior de nós mesmos, e dar de caras com quem realmente somos pode ser desafiante. Precisamente por nos pôr em circunstâncias nas quais não nos vemos diariamente, capazes de estimular um conjunto de características e atitudes que até então desconhecíamos. Além disso, e especialmente quando viajamos para culturas muito diferentes da nossa, há uma incapacidade de adaptação que desperta a pessoa que há em nós. Há uma certa incapacidade de encaixar numa cultura que nos é estranha e que, portanto, nos obriga a ser quem somos, a deitar cá pra fora as nossas entranhas mais profundas e aquela pessoa que ali está, somos verdadeiramente nós, despidos de todos os preconceitos e influências inerentes à nossa cultura. Somos nós, sem filtro, revelando o que temos de bom e de mau. A viagem ajuda-nos a criar um distanciamento maior entre aquilo que faz parte de nós e aquilo que é um produto do contexto social em que crescemos.
Muitas vezes me perguntam o que é que esta viagem me trouxe, o que é que mudou em mim, qual é que foi a principal lição que aprendi desta experiência. É difícil responder, pois viajar ensina-nos muita coisa, sobre nós e o mundo. Ainda assim, diria que viajar me ensinou, fundamentalmente, a ser livre e a não ter medo. Ser livre de mim própria, das minhas próprias ideologias, convicções e preceitos. Não é que não os tenha, porque tenho-os, mas já não os agarro com tanta força. Já não os quero manter comigo a todo o custo. Creio que ter a capacidade de mudar as nossas ideias em função de algo maior que se levantou é não só um ato de maturidade, como também de liberdade. Talvez seja o apogeu da liberdade pessoal, que tantas vezes, por questões de ego ou supremacia, tendemos a abafar. O mundo, com as suas nuances, foi-me mostrando que as coisas são, quase sempre, muito mais frágeis e efémeras do que aquilo que julgamos. Viajar roubou-me os medos, fez de mim uma pessoa mais sólida e íntegra que, embora menos certa de si, é mais certa sobre o que quer de si. Quase todos os meus medos e receios eram infundados, na medida em que decorriam de egos ou de coisas que eu me forçava em não aceitar. Mas a viagem, a vida, o mundo, o tempo, foi deitando por terra todos esses embargos que me alimentavam. E viver sem medos é também ser livre.
O mundo fez de mim uma pessoa mais sensível e mais empática. Uma pessoa menos autocentrada e mais justa, que acredita que o mundo pode ser um lugar melhor e que todos nós temos o dever moral de contribuir para isso. As minhas convicções não mudaram substancialmente, mas tornaram-se muito mais sólidas. Sou hoje uma pessoa mais segura e assertiva nas minhas ações. Não tenho dúvidas de que as viagens que fiz mudaram a minha vida e tenho total certeza de que não seria quem sou hoje se não tivesse feito as viagens que fiz.
E hoje, estou um pouco mais próxima da pessoa que gostaria de ser.
Parabéns pelo desabafo ! Só depois de um ano ! Porquê só agora ? Saudades da viagem ? Ja te encontras tes ! Já és livre 🙂 um dia desses explica me tudo isso 🙂 bjs de quem te ama para sempre! ❤️❤️❤️
Mãe ❤️
Parabéns por este texto espetacular.
Nos somos donos do nosso destino e as vezes me questiono porque não fazemos o que nos faz feliz… se é em viagem que nos sentimos bem e a viver a vida como gostamos porque seguimos todos outros caminhos…
Obrigada pelo comentário Diogo 🙂 sem dúvida. E se não tivermos consciência disso, pode ser muito difícil sair da “teia”