Esta é a quarta crónica de um conjunto de crónicas que pretendem abordar o tema dos Direitos Humanos no Egito. A primeira aborda os Direitos Humanos de uma forma geral, enquanto que as crónicas seguintes relatam episódios que vivi e que me alertaram para a fragilidade destes direitos neste país. Neste artigo relato um encontro com um homem que conheci em Luxor, durante a viagem que fiz ao Egito. Um homem cuja perspetiva sobre a vida, as mulheres, o amor e a traição puseram à prova os meus valores e me obrigaram a despir o meu véu ocidental.

Estava em Luxor quando conheci o Omar, o dono do hostel onde pernoitei e a figura mais impressionante que conheci durante a minha viagem ao Egito. Fui lá parar por recomendação de um amigo, o Pedro – “Quando chegares a Luxor tens de ficar no Happy Land, é altamente”, disse-me. E eu, com a ânsia de me pôr à prova e de conhecer malta local, não pensei duas vezes. Foi para lá que fui.
Chegamos ao hostel às 6h da manhã, vindos de uma exausta viagem de autocarro que saira do Cairo umas 12 horas antes. A viagem fez-se às prestações, com muitos solavancos, como é comum neste lado do mundo.
No dia seguinte conheci o meu anfitrião, o Omar. Era um tipo novo, com 37 anos, magro e de sorriso fácil. Apesar da sua tez morena, não entrajava as vestes tradicionais, e por isso passaria facilmente por português ou espanhol. Usava uns jeans deslavados e um casaco de cabedal castanho. Estava a fumar um cigarro e a beber um chá na entrada do hostel, quando nos cruzamos pela primeira vez. Tínhamos acabado de chegar, com o nosso jantar, e íamos para o último andar do hostel.
Crónicas de uma Viagem ao Egito – a história do Omar

– Já lá apareço para conversarmos um bocadinho – despediu-se o Omar.
Estávamos a refastelarmo-os com a culinária egípcia, eu com um kushari e o Chico com um shawarma, quando o nosso anfitrião chegou. Assim que nos cumprimenta, pousa um charro à nossa frente.
– Haxixe – disse, enquanto se sentava.
– Obrigada – retorqui, com um sorriso embalado num misto de dúvida e receio.
Por momentos questionei a boa vontade do meu anfitrião. Em vários sítios do mundo é muito comum o esquema da droga – oferecem droga aos estrangeiros e, assim que eles estão a consumir, aparece um polícia qualquer vindo sabe-se lá de onde, pronto a extorquir-nos dinheiro. Por outro lado, o Pedro tinha-me dito que o Omar era altamente, e por isso decidi confiar.
– Tenho aqui outro, mas é de erva, se preferirem.
– Ah boa, obrigada – respondi, ainda estupefacta.
Viagem Egito a mulher do Omar e o casamento
A noite prometia e eu estava a ficar com a pica toda. Encetei conversa com o meu anfitrião, começando por contornar as questões mais basilares sobre a sua vida, até mergulharmos naquilo que realmente me interessava.
– És casado?
– Sim, com a Yazd, a minha prima. Temos dois filhos – respondeu, como se casar com a prima fosse a mesma coisa que casar com a filha do presidente da freguesia.
– A prima?! – interroga o Chico, pasmado.
Estava lançado o mote para a conversa que nos iria levar a viajar pela noite dentro. O Omar explicou-nos que os seus pais, na tentativa de o prenderem, o obrigaram a casar com a prima.
Antes de casar com a Yazd, costumava trabalhar nos cruzeiros, que subiam e desciam o Nilo, levando milhares de turistas a conhecer os segredos do Egito. E, por entre o ambiente multicultural característico dos cruzeiros, e por entre tantas estrangeiras, o Omar ia-se divertindo. Levava uma vida tranquila, uma vida que não se coadunava com aquilo que os seus pais desejavam para ele. Estes, com o receio de que este fugisse com alguma mulher, obrigaram-lo a casar com a prima.

– A minha mãe rasgou-me o passaporte à minha frente e obrigou-me a casar com a Yazd. Nós casamos, tivemos dois filhos, mas não deixei os cruzeiros. Continuei a trabalhar lá durante alguns anos, até ter conhecido uma finlandesa que me deu a volta à cabeça.
– Apaixonaste-te? – perguntei, curiosa com o desenrolar daquela novela egípcia.
– Não sei, não diria que fosse paixão. Passávamos muito tempo juntos, a vida nos cruzeiros é muito intensa. Até que a minha mulher acabou por descobrir.
Quando a Yazd descobriu que o seu marido tinha um caso com uma estrangeira, apenas lhe pediu para ver uma fotografia dela. O Omar acedeu e mostrou-lhe o rosto da mulher com quem estava envolvido.
– Ela ficou toda contente quando a viu. Já não me lembrava de a ver tão feliz – respondeu – A Yazd ficou impressionada por eu não a ter trocado por uma mulher tão bonita. E nunca mais se chateou comigo. Desde aí que os ciúmes acabaram e nunca mais tive de dar satisfações à minha mulher.
Precisei de alguns segundos para absorver a mensagem. Afinal, a sua mulher estava contente porque o marido a traiu com uma mulher bonita e, ainda assim, continuou casado com ela. Mais ainda, ela estava grata por essa situação!
– Como assim? Mas ela está a humilhar-se ainda mais – disse ao Chico, em português.
Viagem Egito valores ocidente
Por vezes (muitas vezes), em viagem, temos de nos adaptar. E isto significa que temos de retirar a nossa lente ocidental e passar a olhar para um cenário sem o julgamento de quem tem a certeza de como o mundo deveria ser. Implica absorver as situações sem a necessidade de as rotular como “certas” ou “erradas”. E, ali, com o Omar, percebi desde cedo que tinha de despir o meu véu ocidental. Partir para a condenação iria afastar-nos e não é isso que procuro em viagem. Procuro entender. E, para isso, é primordial saber ouvir.
– Tu percebes-me, não percebes? – perguntou o Omar, dirigindo-se ao Chico – um verdadeiro homem não consegue resistir a uma mulher bonita. Não consegue, é impossível! Se eu te trouxesse aqui uma tipa mesmo boa tu, meu irmão, não conseguias dizer que não.
O Chico não sabia o que dizer, estava também ele a tentar despir o seu véu ocidental mas ficara com um botão preso e não estava a conseguir desenrrascar-se.
– Ahahah a sério que achas isso? Então e uma mulher, consegue resistir a qualquer homem? – indaguei, num tom curioso, procurando não ofender.
– Oh claro que consegue, é muito mais fácil.
Pensei em argumentar, mas percebi que não valia a pena pois partiamos de contextos sociais diferentes. Afinal, estava num país onde a maioria das mulheres são mutiladas genitalmente. É compreensível que não gostem de sexo e, portanto, é normal que os homens partilhem esta opinião. Segundo dados de 2005, 97% das mulheres, entre os 15 e os 49 anos, foi vítima de mutilação genital.
– Mas eu tenho uma regra – não me envolvo com mulheres egípcias, só estrangeiras – disse, orgulhoso, o meu anfitrião.
– (Pois claro, se as mulheres daqui são frígidas, claro que tu preferes as outras) – pensei, mas não disse.
Apesar de esta prática ter sido criminalizada em 2008, tal atrocidade continua a ocorrer. Em 2020, a morte de uma menina por hemorragia após o corte voltou a reacender o debate. Segundo o Omar, as mulheres do Egito eram ciumentas e compulsivas e por isso é que não se envolvia com elas. “Elas não querem saber do homem para nada”, disse. Querem cuidar dos filhos e da casa, da família, enquanto entidade, por quem sentem um tremendo orgulho. São ciumentas não pelo marido, mas pela família, pela possibilidade de verem destruída a sua família.

Entretanto, apareceu um rapaz novo com um saco de papel que entregou cuidadosamente ao Omar. Lá dentro estava uma garrafa de Ballantines, uma lata de coca-cola, um saco de gelo e dois copos. Quando vi apenas dois copos, interroguei-me se me teriam excluído por ser mulher.
– Sirvam-se, é para vocês. Eu hoje fico-me pelo chá – disse o Omar, enquanto bafejava em mais um charro.
– (Menos mal) – pensei.
– As mulheres ficam loucas comigo e eu, ao fim ao cabo, não consigo dizer que não e depois envolvo-me. Já tive de tudo – americanas, espanholas, chinesas, já perdi a conta – disse-nos, como um puto que colecciona cromos.
– E tu sentes-te mal por isso? Sentes que estás a trair a tua mulher?
– O que queres dizer com trair?
Viagem Egito mulheres amor direitos
Procurava palavras para explicar ao meu anfitrião o conceito de trair, mas ele fora peremptório na sua resposta.
– Eu não sinto que estou a fazer mal a ninguém – disse, genuinamente – muito pelo contrário. Eu acho que estou a fazer o bem. Alá disse “Amai e cuidai as mulheres”. Ele não falou só numa, ele disse “mulheres”. Além disso, que mal eu faço? As mulheres ficam felizes quando se envolvem comigo, e eu fico feliz por me envolver com elas. Estou só a aumentar a felicidade do mundo. A minha mulher sabe e não se importa. Como é que eu posso ficar chateado com uma coisa tão boa?
O Chico olha para mim e inclina levemente a cabeça, com aquele ar de “não vale a pena dizer mais nada”. Eu, que já tinha despido o meu véu e o tinha atirado para as águas do Nilo, assenti com a cabeça, concordando com o meu anfitrião. Ainda assim, esta opinião não deixa de ser curiosa, em especial se considerarmos que 82% dos egípcios apoia o apedrejamento para quem comete adultério.
– E os teus pais? Estão vivos? – perguntou o Chico, numa tentativa de desviar a conversa.
– Não, já morreram, felizmente – respondeu.
– Felizmente?
O dia mais feliz da vida do Omar tinha sido não o dia do seu casamento, não o dia de nascimento dos seus filhos, mas sim o dia em que os seus pais faleceram.
– Finalmente, sou um homem mais livre desde que eles morreram. Enquanto foram vivos tive de estar sempre disponível para o que queriam. Tive de levar a vida que eles escolheram. Nunca me senti livre.

Viagem Egito família casamento
Durante esta conversa senti que as minhas ideologias e os meus valores estavam a ser constantemente arrebatados, como um guarda redes que enfrenta pela primeira vez um jogo da primeira divisão. Cada frase que ele dizia, cada ideia que ele partilhava, era sobejamente diferente de tudo aquilo que eu já tinha visto, de tudo aquilo que eu já tinha imaginado.
Porém, é precisamente esta disonância que eu pressigo quando viajo – quero por-me à prova, questionar-me, e limar os vértices daquilo em que a vida me tornou. Tal não significa que eu vá mudar substancialmente os meus valores. No final de tudo, e em especial depois de regressar a Portugal, visto novamente o meu véu ocidental e regresso à minha vida normal. Mas talvez leve um botão a menos. Talvez o dispa com mais facilidade numa próxima vez.
– Omar, tenho mais um pergunta.
– Qual é? – respondeu-me, com o sorriso pacífico que lhe é característico.
– Já amaste alguma mulher? A tua esposa, ou outra.
– O que é isso, do amor? – respondeu – acho que nunca senti isso.
