Onde o 25 de Abril “ainda” não chegou

Hoje é dia 25 de Abril. Mas de 2020 e não de 1974. 46 anos separam estes dois dias.

Este é, para mim, um dos dias mais importantes do ano e aquele de que mais me orgulho na história do meu país. Julgo que a minha grande admiração por este dia vem daquilo que ele representa, pelo menos de duas coisas que me são absolutamente idiossincráticas – o respeito (e amor) pela liberdade, e o potencial do povo, inerente ao poder de cada um de nós enquanto indivíduo em sociedade.

Nas viagens que fiz vi-me muitas vezes confrontada com realidades muito diferentes daquela em que sempre vivi. Nomeadamente, em situações onde a liberdade individual de certas pessoas não era igual à liberdade de que eu usufruía no meu país, à liberdade que eu achava que todos deveríamos ter. Eu sabia de antemão, claro, que nem todos gozamos das mesmas circunstâncias. Não precisei de viajar para sabê-lo. Mas precisei de viajar para perceber o impacto que isso pode ter na vida das pessoas. Viajei por lugares onde a educação não é um direito obrigatório e onde a informação não passa de uma palavra confusa que ninguém sabe bem o que é que significa.

Durante duas semanas vivi na aldeia de Nossum, no Laos. Tinha pouco mais do que vinte casas de madeira, que de casas pouco tinham. Tinha ido para lá dar aulas de inglês e quando cheguei atribuíram-me duas turmas – uma de miúdos de 12 anos, a quem deveria ensinar inglês de nível básico, e uma turma com miúdos de 18 anos, que já falavam muito bem inglês, a quem deveria ensinar o nível máximo. Fiquei um pouco apreensiva com “o nível máximo”, mas logo na primeira aula percebi que o “nível máximo” correspondia, no meu entendimento, a um nível bastante mediano. Ao longo dessas duas semanas percebi que aquela escola não era igual àquilo que eu entendia que uma escola devia ser, e aquilo que lá se ensinava nem sempre se aproximava da realidade. Afinal, estávamos numa república socialista unipartidária, o que no meu raio de ação enquanto professora voluntária se refletia na proibição de falar sobre uma série de temas como religião, política ou filosofia. Tudo aquilo que eu deveria ensinar tinha sido, inclusive, revisto e aprovado pelo governo e eu não me deveria afastar muito daquelas linhas, demasiado retilíneas para o meu gosto. Recordo-me que num desses dias deveria lecionar o “Mapa Mundo”, tal e qual como estava calendarizado, mas assim que abri o livro para preparar a aula percebi que aquilo, de mundo, tinha pouco. O “Mapa Mundo” que deveria ensinar compreendia os países que iam do Myanmar às Filipinas, correspondia apenas aos países que compunham a região do sudeste asiático. Naquele dia eu tinha de ensinar algo que não era verdadeiro, porque alguém assim queria. Para aqueles miúdos a imagem do mundo seria totalmente diferente da minha e, mais importante do que isso, não era real. Percebi mais tarde, quando falei com os alunos mais velhos que, embora eles saibam e conheçam os países vizinhos, como o Vietname ou a Tailândia, países mais distantes como a França, a Alemanha ou Portugal, saíam completamente do seu raio de compreensão. Para eles, Portugal era uma conceção tão longínqua e desfigurada como para nós são os nomes das estrelas e constelações da Via Láctea – sabemos que existem algures, mas não sabemos bem explicar o que são nem onde estão. Para eles o mundo não tinha cinco continentes e 193 países. Mais longe estavam ainda de conhecer outros conceitos, como o de liberdade ou democracia.

Fiquei revoltada, mas não havia muito que pudesse fazer. Sentia a necessidade de abrir horizontes e de alargar um pouco mais o espetro de compreensão daqueles meninos. Aqui e ali fui falando de ideias liberais, de países diferentes, do direito de oportunidades, do direito de escolha, da liberdade de expressão, de poder fazer o que à vontade assiste, da igualdade de direitos e deveres, e por aí fora. Eu queria que eles entendessem que tinham em si, enquanto indivíduos, enquanto seres humanos, o poder da mudança. E que, juntos, eram capazes de construir essa mudança e de evoluir, em prol de um país mais livre, mais justo. Mas não consegui. Lentamente, fui percebendo que eles não percebiam nada. Afinal, como é que eu poderia levá-los a lutar por uma coisa que eles não sabem o que é? Eu contava-lhes que a nossa vida aqui era diferente, que não era preciso casar aos 16 anos nem trabalhar no campo a vida toda. E eles olhavam-me, curiosos, mas não percebiam …  Como é que se pode incentivar um povo a lutar pela sua própria liberdade quando eles não sabem que não são livres?

“Pássaros que nascem em gaiolas não sabem que podem voar”

Desejo que um dia eles consigam fazer aquilo que nós, há 46 anos atrás, fizemos. Que um dia eles consigam dobrar a curva da opressão e possam experimentar o sabor da liberdade. Que possam estudar e que aprendam a pensar por si próprios. Que tenham a liberdade intelectual de discutir diferentes ideias e perspetivas. Que tenham não só a oportunidade para fazer escolhas, mas também o direito de as fazer.

Quanto a mim, restou-me aprender que a liberdade é muito mais algo que se aprende do que algo que se conquista e que a democracia é bem mais frágil do que aquilo que julgamos.

Que a saibamos sempre valorizar, para que nunca mais nos volte a faltar.

4 comentários em “Onde o 25 de Abril “ainda” não chegou”

  1. Patricia adorei o texto. Continua a publicar algo, por muito pouco que seja. Tens uma visão bastante interessante do mundo, e isso também faz os outros levantar os pés da terra. Quando criaste o blog querias ser o mais real possível mas também entendeste o prós de publicar constantemente. Gosto muito da tua sensibilidade de comunicar, ótimo trabalho, continua.
    Beijinhos!

    1. Patrícia Carvalho

      Obrigada Adriana 🙂 Sem dúvida, tenho tentado fazer algo mais orgânico. Vou publicando quando o texto sai e quando me faz sentido partilhá-lo. Aliás, deveria ser sempre assim.
      Espero que esteja tudo bem contigo. Beijinhos!

  2. História incrível!
    É, realmente, impressionante a diferente realidade de um país como o nosso e destes países que não têm praticamente nada.
    Deve ter sido, apesar de dizeres que já sabias em parte o que ias encontrar, um choque teres apanhado estas realidades pela frente.
    No final disto tudo, além de teres deixado a tua marca pessoal por lá, certamente fizeste amizades e recordações que nunca mais vais esquecer (nem eles).
    Estamos sempre a aprender e, é triste, que muitas das vezes, sintamos que nos falta algo e, no fundo, temos muito mais do que muitos povos por este mundo fora.

    Valorizemos a nossa liberdade!

    PS: Espero que esteja tudo bem contigo e família, tendo em conta a situação actual. 🙂

    Beijinho

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