“Entre fronteiras – A resistência Silenciosa dos Refugiados Birmaneses” é um conjunto de 3 crónicas escritas por mim, Patrícia Carvalho, durante a minha passagem pela fronteira que divide a Tailândia do Myanmar. Ao longo destes dias ouvi diversos depoimentos de pessoas que deixaram o seu país para procurar asilo na Tailândia. Nestas crónicas assumi a difícil responsabilidade de reproduzir, com a maior coerência, aquilo que vi, ouvi e senti.
O Myanmar é um dos países com maior diversidade étnica em todo o mundo, que reconhece pelo menos 135 etnias (embora se estime que existam muitas mais). Esta enorme diversidade cultural está na base de muitos dos confrontos que tem assolado o país ao longo das últimas décadas, e que tem deslocado milhares de refugiados birmaneses para os países vizinhos. Com o objetivo de “promover a coesão nacional”, o regime militar tomou novamente o poder em 2021.
Este golpe de estado veio atrasar o desenvolvimento do país, que desde 2011 estava lentamente a caminhar para um futuro construído com base na democracia e no progresso, através dos esforços da Conselheira de Estado Aung San Suu Kyi.
Mas, em Março de 2021, a antiga Birmânia mergulhou novamente num estado de caos e desordem. Desde então que o país está novamente numa guerra civil que envolve diversas frentes – de um lado estão os apoiantes do regime militar, que pretendem voltar ao autoritarismo, repressão e isolamento internacional que caracterizou o país até 2011; por outro estão os pró-democratas, que pretendem construir um futuro assente nos pilares da democracia, com uma economia aberta ao mundo; e por outro estão dezenas de milícias armadas, pertencentes às mais diversas minorias étnicas, que reivindicam independência territorial e contestam a discriminação e segregação social que tem sofrido ao longo de décadas. Desta efervescente panóplia de ideais políticos, resultou uma enorme crise política, social e humanitária que colocou o Myanmar numa posição de enorme fragilidade. O país voltou a fechar-se sobre si próprio e pouco ou nada se sabe sobre o que acontece dentro das suas fronteiras.
Na impossibilidade de entrar no país, procurei respostas junto daqueles que conseguiram escapar a este clima de tensão. Esta busca levou-me até às montanhas da Tailândia, onde diariamente chegam centenas de refugiados birmaneses que tentam atravessar a fronteira de forma ilegal. Alguns conseguem refugiar-se nas aldeias circundantes, enquanto que outros acabam por ser encaminhadas para campos de refugiados.
Enquanto turista, não me foi permitido entrar nestes campos e, por isso, procurei depoimentos junto de pessoas que viviam nestas mesmas aldeias. E foi assim que conheci a Matha, uma jovem de 19 anos que pertence à minoria étnica Lisu. Chegou à Tailândia há 3 anos, com toda a sua família. Assim que os primeiros confrontos começaram a surgir na sua cidade, a família decidiu prontamente deixar tudo para trás e procurar um futuro mais risonho no país vizinho. “O exército vinha às aldeias recrutar pessoas. Por exemplo, se uma família tiver dois filhos, eles levavam um com eles. Por isso é que viemos embora”, explica-me Matha, enquanto conversávamos no alpendre da sua nova casa.
A travessia foi feita de noite, para evitar serem descobertos. Empilharam os seus pertences em meia dúzia de mochilas e fizeram-se à estrada, de mota. “Na fronteira tivemos de deixar a mota para trás e subimos as montanhas a pé durante a noite. Custou-me tanto subir, pensei que não ia aguentar”. O caminho é feito com recurso a passadores ilegais, que em troca de um pagamento generoso asseguram a entrada ilegal dos refugiados birmaneses. Todo o cuidado é pouco e, se por um lado é necessário ter cautela durante a passagem de fronteira, por outro toda a gente sabe que aquilo acontece todas as noites. E por toda a gente entenda-se “os militares tailandeses” que têm como função patrulhar a fronteira. Alguns deles são, inclusive, os tais passadores.
Estávamos a comer amendoins cultivados por ela quando o caçoulo da família começou a chorar. Tinha um ano e meio e era o sobrinho de Matha. Nasceu já na Tailândia e, ao contrário do que se possa pensar, nasceu num hospital, com todos as condições de qualquer outro bebé tailandês. Apesar de a família estar numa situação irregular, os cuidados médicos não lhes foram negados e isso é motivo suficiente para não contestarem a sua situação. Mas, infelizmente, o pequeno Noli não trouxe consigo a nacionalidade tailandesa que os seus pais tanto desejavam. Apesar de ter nascido em território tailandês, saiu do hospital com apenas uma certidão de nascimento, onde consta que um bebé birmanês nasceu naquele local. “Eles escrevem birmaneses, mas nós não somos birmaneses. Mas eles escrevem assim porque vimos do Myanmar”, explica-me Matha, enfatizando que os birmaneses não são o único povo do seu país.
Quando lhe perguntei qual a maior diferença que sentiu entre a sua vida na Tailândia e a que tinha no Myanmar, a jovem respondeu-me com prontidão. “Aqui com 20 baths (aprox. 0,54€) consegues ficar cheia, no Myanmar não”. Mas eu, do alto do meu privilégio de mulher branca que nunca passou fome, não percebi o que é que ela quis dizer. Perguntei ao Chico, meu namorado, “Cheia como assim?!”, em português, para que Matha não percebesse a minha dúvida. O Chico colocou a mão na barriga e olhou para mim num tom de desaprovação. Fui imediatamente inundada por um enorme sentimento de vergonha.
Naquela casa vivem 7 pessoas e todas elas estão numa situação irregular, isto é, sem visto nem autorização de residência. A zona fronteiriça está pejada de checkpoints, onde militares validam e autorizam a passagem de todas as pessoas. Ora, devido à sua situação vulnerável, nem a Matha nem ninguém da sua família pode cruzar estes postos, o que significa que estão confinados a viver num raio de 2 a 3 km quadrados. Mas não precisam necessariamente de se esconder. Todos sabem que naquelas aldeias ninguém é tailandês. São todos refugiados birmaneses, e neste caso todos pertencem ao grupo étnico Lisu. Alguns já lá estão há 20 anos, outros há mais. Ao longo do tempo foram construindo as suas próprias infraestruturas – desde a escola onde Matha estuda, até à humilde igreja, onde às quintas-feiras se celebra a eucaristia.
O facto de as crianças e jovens continuarem a ir à escola deixou-me particularmente sensibilizada. Afinal, estas pessoas vivem em cativeiro, numa espécie de prisão a céu aberto onde os seus movimentos e a sua liberdade estão altamente condicionados. A Matha só cá está há 3 anos, mas a maioria das pessoas está há 10, 20 e até 30 anos. A probabilidade de estes jovens terem cidadania, saírem daquelas montanhas e terem um futuro igual ao dos jovens tailandeses é muito reduzida. Com esta perspetiva, onde raio se arranja motivação para aprender? O que é que impulsiona estes jovens a acordar todos os dias e a ir à escola? Onde querem chegar?
Presumi, erradamente, que teriam a cabeça cheia de sonhos. À pergunta, “O que é que gostarias de ser quando fores grande?”, a jovem Matha respondeu-me, entre risos tímidos, “não sei, é difícil dizer”. Diz-se que sonhar não custa, que é grátis e está ao alcance de todos. Mas não creio que assim seja. Porque sonhar implica que se tenha, pelo menos, uma centelha de esperança, uma réstia de alento, uma pobre certeza de que o futuro nos vai sorrir. Mas, quando as vicissitudes da vida nos toldam a esperança, roubam-nos também a bonita capacidade de sonhar.
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Pena nao ter conhecimento que ganhas dinheiro por Get your guide. Proxima viagem ja vou por este link. Adorei ler o teu depoimente sobre este povo de Myanmar
Não fazia a mínima ideia da realidade destes refugiados, aliás não fazia ideia que existiam sequer. Excelente trabalho! Obrigada
Que experiência interessante, gostei muito do artigo. A próxima vez que vieres a Âncora city traz um dos teus livros, estou compradora 🙂 beijinhos