Aquilo que eu não contei – parte II

Quando estava a começar este projeto, no processo de criação do blog, o Filipe fez-me algumas questões práticas sobre marketing digital, por entre as quais sobre “como é que eu pensaria destacar o meu projeto sobre viagens, face a todos os outros blogs e instagrams que já existem”. Pergunta difícil, à qual eu não tinha ainda uma resposta. Afinal, eu só queria partilhar a minha viagem e porventura inspirar os outros a partir, tal como os outros blogs/instagrams haviam feito comigo. Refleti sobre essa questão e sobre como poderia tentar ser diferente. E aí decidi que, se tivesse de marcar pela diferença, em algum ponto, passaria por ser o mais verdadeira possível. Já tinha viajado para a Ásia sozinha uma vez e sabia que nem sempre era pêra doce. Sabia que haveriam alturas em que me sentiria sozinha, triste, aborrecida, com saudades de casa. Sabia que haveriam desafios para cumprir e que coisas más também poderiam acontecer.
Ao longo destes 8 meses tentei sempre partilhar isso de forma honesta, mesmo nos dias mais difíceis. Todos os dias dei a cara no instagram e acreditem, muitas vezes não estava com paciência nenhuma. Muitas vezes liguei a câmara só para dizer que tive um dia de m****, que estava aborrecida, que o dia não tinha corrido bem. Porque acho que é também importante partilhar isto. Convenhamos, a vida não é cor-de-rosa e ninguém está durante 8 meses completamente feliz, nem em viagem. Porém, mesmo apesar do lado mais negro de uma viagem destas, continua sempre a valer a pena. Esta continua a ser a melhor experiência da minha vida.
Houve situações que eu não partilhei no instagram e que ninguém soube, até agora. E fi-lo apenas para proteger a minha família.  Especialmente a minha mãe que ao longo destes meses, mesmo sabendo que eu estou a realizar um sonho, contou os dias para eu voltar para casa. Muitas vezes me ligou dizendo que tinha sonhado com o meu regresso, que correu para o meu quarto para se certificar se havia ou não sido um sonho. Mãe é mãe e isto era o mínimo que eu lhe devia.
Estando já na reta final desta jornada partilho agora as más situações desta viagem que não contei em tempo real, da forma mais honesta possível. Os textos são longos, mas estão íntegros, tal e qual como foram escritos na altura em que aconteceram. Não fiz alterações.


Quase dentro de um esquema turístico

11 de Fevereiro – Yangon, Myanmar

(…) Depois de visitar o Sule Pagoda um rapaz birmanês aborda-me e diz-me que a minha tatuagem no pescoço era muito fixe. Agradeci e lá começamos a meter conversa. Era um miúdo de 23 anos, estudante de engenharia, com um nível de inglês compreensível. Lá conversamos durante uns minutos e, entretanto, ele disse-me que, se tivesse tempo, deveria ir a um templo não sei que, que ficava do outro lado do rio, com many many tourists. Nunca tinha ouvido falar no templo, mas também não tinha nada para fazer mais naquele dia e então pedi-lhe as indicações para lá chegar. Lá me começou a explicar até que se ofereceu para ir comigo pois não tinha nada para fazer. E eu aceitei. Não desconfiei de nada porque realmente ele não estava a fazer nenhuma pressão para que eu lá fosse. Apenas estava a sugerir. E lá fomos.

Começamos por apanhar um autocarro para fazer apenas 3 paragens. Fazia-se bem a pé, mas como estava calor e era barato, aceitei. Segundo o rapaz depois do autocarro deveríamos apanhar um barco até ao outro lado do rio, onde ficava então o templo. Ainda no autocarro ele recebeu uma chamada e depois de ter atendido disse-me que era a irmã a explicar não sei o quê. Chegamos então à zona dos barcos. Eram barcos de madeira a motor, num sítio completamente velho, com zero turistas e 20 locais metidos num barco. Aí comecei a estranhar, mas fui! A viagem custava 3 000 MMK, não chegava a dois euros. O rapaz do barco ainda nos ofereceu um guarda-chuva para nos protegermos do sol! Arrancamos e, ao contrário do normal, o barco não ia propriamente em linha reta. Lá ia fazendo uns desvios, e, quando perguntei ao rapaz porquê, ele disse-me que tinha a ver com as correntes. Voltou a receber uma chamada e mais uma vez depois de a ter terminado fez questão de me explicar o seu conteúdo mesmo sem eu ter perguntado nada.

Nunca mais chegávamos e aí caiu-me a ficha, “Patrícia, estás num barco com uma pessoa que não conheces de lado nenhum, a ir não sei para onde do outro lado do rio, sabes lá se não é um beco ou uma zona perigosa”. Além disso, a paisagem era degradante, de uma pobreza extrema, parecia tudo menos o local apropriado para encontrar um templo fantástico. Começou-me a cheirar a esturro e comecei a sentir-me desconfortável e com medo. Tentei acalmar-me e pensar “Patrícia não sejas assim e não duvides de tudo, vais ver que na volta vais passar um dia fantástico e vai valer a pena.” Mas o meu instinto estava a falar mais alto. A viagem estava a demorar muito tempo, o barco estava a dar demasiadas voltas. Peguei no telemóvel e comecei a pesquisar pelo tal templo, que ele dizia ser algo como “Snake Temple”. Pedi-lhe que escrevesse o nome no telemóvel, ao que ele responde que não sabe escrever inglês. Achei estranho, então anda na universidade, fala inglês tão bem e não sabe escrever? Por outro lado, é verdade que há muita gente aqui que aprende inglês ouvindo e por isso não sabe ler nem escrever. Assim que chegamos e vi a aldeia, sem canalização, sem eletricidade, sem estradas de alcatrão, com casas construídas com paus, conclui que não, ali não poderia haver nenhum templo incrível. Logo depois andamos uns 200 m e já lá estava uma mota à nossa espera, que nos levaria ao tal templo, em 20 min. Aí foi a gota de água.

Tinha aceite um convite de um desconhecido, tinha apanhado um autocarro para algum lado, tinha apanhado um barco estranho que nos deixou num sítio ainda mais estranho, e ainda me ia meter numa mota com dois desconhecidos para uma viagem de 20 min? “Que se lixe o templo, isto não me está a cheirar bem”, pensei. Disse-lhe que não, que não queria ir, e que queria voltar para trás. Ele disse que não podia voltar porque o barco que nos trouxe podia vir mas não podia ir, o que é estupido. Disse também que, se apanhasse o mesmo barco, ia aparecer a polícia. Foi aí que fiquei verdadeiramente assustada e me senti enclausurada num sítio que não conhecia, desnorteada e sem saber o que se estava a passar. O rapaz começou a ficar claramente chateado, meio que a discutir e a querer-me dizer que não tinha outra hipótese a não ser ir com ele. Disse-lhe que não ia a lado nenhum de mota mil vezes e que ia voltar para a cidade. Ele disse então que ia até ao templo e que depois voltava para o big ferry. Meteu-se na mota e foi-se embora.

Tive ali um pico de stress, medo e adrenalina e tive de me mexer para algum lado. Estávamos perto da rua principal e vi, no mapa, que seguindo essa estrada iria ter ao tal ferry que me levaria de novo para a cidade. Corri para a estrada principal e pedi logo a um tipo que me levasse até lá de mota, naquilo que parecia ser um amontoado de taxistas. O homem levou-me então ao ferry em 5 min. Chegados ao porto, a confusão total: centenas de pessoas a sair do ferry e outras tantas a entrar, nenhum turista. O cheiro nauseabundo, o calor sufocante, a lixeira, a pobreza, tudo ali ao mesmo tempo, numa realidade que não era aquela que eu tinha visto em Yangon, mas que acredito ser a verdadeira realidade do Myanmar. Fui para a fila e vi toda a gente a pagar 200 MMK, e quando chega a minha vez o gajo disse que para mim eram 2 000 MMK. Protestei e ele mandou-me esperar num canto. Não estava para mais filmes, muito menos para ficar à espera, só queria voltar para o hostel. Dei-lhe os 2 000 MMK e ele deu-me um bilhete diferente dos outros. Entrei no ferry, por entre a confusão de pessoas e animais e sentei-me. Tivemos de esperar que ele enchesse para partir, algo que não deve ter demorado mais de 10 min mas que para mim durou uma eternidade! Queria chorar, mas estava a tentar conter-me. Mandei mensagem ao Diogo, um português que estava lá também em Yangon a viajar, a perguntar-lhe se estava pelo centro. Não me contive mais e comecei a chorar.

Assim que chegamos fui o mais depressa que pude para o hostel, quase a correr. Quando cheguei deitei-me na cama e a minha cabeça parecia pesar uma tonelada. Tive um pico de medo e adrenalina tão grande que, assim que estava em segurança e pude baixar a guarda, fiquei completamente extenuada. Queria ir tomar um banho de água fria, mas não me conseguia mexer, queria dormir, mas não estava assim tão calma para isso. Fiquei ali, a olhar para o nada mas ainda em choque durante umas boas 2h. Muitas perguntas me vinham à cabeça. Será que eu tinha sido demasiada exagerada e que o rapaz ficou ofendido? Será que não havia nada de mal por trás daquilo? Ou será que havia? E, se houvesse, o que seria? Será que ele me iria violar, ou roubar tudo o que tinha? Não sabia se tinha ou não escapado de algo, e, se sim, de que algo é que me teria safado! Além disso, perguntava-me também, como é que, daqui para a frente, conseguiria voltar a confiar em estranhos depois de uma experiência destas. Claro que o meu sistema de alerta iria disparar a qualquer simpatia que parecesse ser demais.

O problema disto é que entramos literalmente em paranoia e começamos a desconfiar de tudo e todos. E é contra isso que eu tanto luto quando falo de viagens. Eu sei que, efetivamente, há mais pessoas boas do que más no mundo, há mais pessoas a quererem-te ajudar do que a te quererem lixar! É isso que conto aos outros, é nisso em que acredito, e continuo a acreditar! Ainda assim, quando isto acontece connosco, é difícil separar o trigo do joio e continuar a manter essa linha de pensamento quando o nosso lado irracional dispara, na tentativa de nos proteger. Também me perguntava como é que eu iria continuar neste país pois, por leves momentos, só me quis ir embora do Myanamar. Como é que eu iria continuar a desfrutar deste país e porventura achá-lo um país incrível, depois desta experiência? Todos estes pensamentos andavam à roda na minha cabeça cansada. Precisava de digerir isto tudo  mas o problema é que eu não sabia o que havia para digerir, estava tudo muito confuso na minha cabeça.

Volvidas duas ou três horas nisto mexi-me para ir almoçar. Fui ao primeiro restaurante que apareceu ao lado do hostel e já estava crucialmente melhor. Estava a comer fried rice e a pensar, “Que se f***, já passou e agora estou fixe”. Voltei para tomar um banho e, entretanto, o Diogo respondeu-me a perguntar se não queria ir dar uma volta pela Chinatown. Apesar do cansaço aceitei logo o convite pois não havia nada melhor do que espairecer a cabeça e falar um pouco a nossa língua.

Assim que lhe comecei a contar o que tinha acontecido ele disse-me que, no hostel dele, havia um aviso para não aceitar convites para ir até à zona de Dallas, essa mesma zona onde havia estado, do outro lado do rio. E foi aí que as coisas começaram a fazer sentido. Comecei então a pesquisar na internet e, embora a informação não fosse muita, entendi o que estava por trás daquilo. Um esquema turístico! Basicamente levavam os turistas para o tal templo e para uma vila flutuante extremamente pobre e tentavam convencer as pessoas a comprar arroz para doar à aldeia, arroz esse que custava uns 20 ou 40 dólares e que provavelmente depois era devolvido a quem o vendeu. Além disso, no final de contas, cobrariam um balúrdio pelo aluguer da mota. Começavam por dizer que o preço seria uns 3 ou 4€ e, no final, diziam que esse era o preço por cada meia hora. Numa das reviews que li na intenet uma rapariga tinha perdido 120 dólares. Se te recusasses a pagar, 4 ou 5 homens fariam uma rodinha à tua volta dizendo que no país deles são eles que ditam as regras.

Confesso que fiquei mais descansada quando soube que era só um esquema turístico. Afinal ninguém ponderou violar-me ou roubar—me tudo o que tinha. Na minha cabeça tinha imaginado coisas bem piores do que perder 100 dólares. Significava também que isto era algo localizado e que, portanto, não indicava que as pessoas daquele país eram realmente más. Esquemas como este existem por toda a Ásia, eu simplesmente não estava preparada para o Myanmar. Este país não estava nos meus planos e por conseguinte não tinha feito quase nenhuma pesquisa sobre ele.

Mas também muitas coisas começaram a fazer sentido na minha cabeça. Por que é que apanhamos um autocarro e um barco de madeira, se o ferry ficava mesmo lá ao lado, na zona onde nos conhecemos? Porque na zona dos ferrys havia avisos colocados pela polícia para não aceitar convites para ir a Dallas. Por que é que o barco não foi em linha reta e andou ali aos ziguezagues? Porque havia um posto da polícia lá, e a polícia já sabia destes esquemas e, portanto, era proibido para estrangeiros apanhar este tipo de barcos. E também por isso é que o gajo do barco, mal entrou, nos deu um guarda-chuva que o outro tipo abriu para me proteger do sol. Tudo isto para que a polícia não visse que estava ali uma turista. E todas aquelas chamadas que ele recebeu, e que tinha a necessidade constante de me explicar quem era e sobre o que estava a falar? Provavelmente estava só a combinar o esquema com o tipo da mota, dado que mal chegamos lá o gajo já estava à nossa espera. E quando lhe pedi que ele escrevesse o nome do templo na net e ele disse que não sabia escrever inglês? Um gajo de 23 anos que está na universidade e que fala inglês, não sabe escrever? Todas as coisas estranhas começavam então a fazer sentido.

No final de contas havia gasto apenas 3,50 € com a brincadeira, o que me descansou. Aquela zona de Dallas foi completamente destruída por um tsunami não há muitos anos e por isso é que estava tão decadente. Não havia estradas de alcatrão, saneamento, casas sólidas ou água corrente. Era o fim do mundo. Contudo, era a realidade daquelas pessoas. Ficou a experiência para mais tarde contar. Dizem que numa viagem tão longa e feita desta forma, há sempre um filme deste género. Espero que seja o último!

9 comentários em “Aquilo que eu não contei – parte II”

  1. O meu coração está quase quase destruído ! Estou chocado mas ao mesmo tempo aliviada porque não aconteceu o que estava a prever enquanto lia !!! Que susto ! Fiquei revoltada com essa situação ! Mas que sirva de aviso para outras viajantes !!!! Coragem e olha para a frente !

  2. Caraças!!!
    Admiro-te pela coragem de andares pelo mundo sozinha!!
    Eu não seria capaz!! Sou uma “cagufas”!!!
    Ainda bem que foste esperta 🙂
    Que tudo corra bem!!

  3. Fogo, Patrícia devias escrever um livro. Senti-me arrepiada o tempo todo que li a tua história. Cada vez admiro mais a tua coragem. És realmente uma inspiração!

  4. Tal como tu pensei o pior, do mal ao menos mas imagino o susto que apanhaste, e mais uma vez te digo o quanto corajosa és!!! Cada dia te admiro mais.

  5. À descoberta pelo mundo

    Meu deus! Descobri o teu blog há pouco tempo mas a cada história destas, o meu coração bate mais rápido! Ainda bem que foste esperta… Boas viagens! @adescobertapelomundo

  6. Bolas!!! Só agora li as situações porque passou. Realmente é preciso ter coragem. Acho que de todas aventuras e paises que percorreu, esses casos poderiam ter causado grandes dissabores e pior terem-lhe tirado essa vontade de viajar e conhecer.

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