Quando viajamos para países cujo custo de vida é inferior ao nosso somos muitas vezes invadidos pela consciência do privilégio. Percebemos que nós, enquanto turistas, estrangeiros, temos um maior privilégio social face aos habitantes daquele país. Esta consciência gera muitas vezes um sentimento de culpa e embaraço com o qual não sabemos lidar. Neste artigo vou explorar a questão do privilégio em viagem, perceber em que situações é que o mesmo se manifesta e de que forma é que podemos lidar com este facto e transformá-lo em algo positivo.
Para começar esta análise é importante definir o conceito do privilégio, perceber a sua origem e entender porque é que este é mais frequente quando estamos a viajar.
O privilégio pode ser definido como uma vantagem atribuída a um determinado grupo de pessoas em detrimento de outras. Por outras palavras, existe privilégio sempre que um grupo de pessoas usufrui de mais direitos do que os restantes, sem ter feito nada para o merecer, pelo menos de uma forma direta.
A origem do privilégio em viagem advém da existência de diferentes países, com níveis de desenvolvimento distintos. Está, também, diretamente relacionada com o estado de riqueza de cada um – quanto mais dinheiro um país tem, melhor qualidade de vida consegue proporcionar aos seus cidadãos, melhores salários estes recebem e portanto maior a possibilidade que estes têm para canalizar algum do seu dinheiro para uma viagem. Neste sentido, viajar é, por si só, um privilégio, na medida em que só é acessível a um grupo restrito de pessoas.
É claro que viajar não implica necessariamente uma viagem ao estrangeiro, é possível viajar dentro do próprio país. Porém, neste texto, focar-me-ei apenas nas viagens ao estrangeiro enquanto fator gerador de privilégio, uma vez que é nestes casos em que este mais se faz sentir.
Por último, importa referir porque é que a noção de privilégio é mais frequente em viagem. Quando procuramos um destino para viajar, quase sempre procuramos destinos cujo custo de vida seja inferior ao nosso, por razões óbvias – em primeiro porque o nosso dinheiro vale mais nesse país e em segundo porque podemos levar um estilo de vida melhor, com mais regalias. Existe, portanto, um fluxo maior de turistas de países mais ricos para países mais pobres, do que o contrário. Além disso, o fator presencial desempenha também um papel importante – uma coisa é sabermos da existência de povos com menos direitos do que nós, outra coisa é estar lá a conviver com eles. Somos mais facilmente assaltados pela noção do privilégio quando estamos no terreno.
Siem Reap, Camboja, dezembro de 2018:
Em Siem Reap tive um grande debate pessoal com a questão do privilégio. Durante a semana que aqui passei, costumava fazer uma massagem nos pés todos os dias à noite, pois meia hora de massagem custava 2 dólares, menos de 2 euros … Porém, era também à noite que as ruas da cidade se enchiam de mendigos que pediam dinheiro aos turistas, alguns dos quais alegavam que o dinheiro era para comprar leite e ofereciam-se para ir com o turista ao supermercado compra-lo. Lembro-me que na altura pensava “Fogo, tas aqui a gastar 2 euros para uma massagem, quando esses 2 euros podiam alimentar alguém”. E assim deixei as massagens de lado e comecei a doar 1 euro por dia – foi o valor que estipulei pois era aquele que me permitia ajudar diariamente alguém sem pôr em causa as minhas necessidades.
Dias depois percebi que a história do leite era um esquema – os mendigos estavam na verdade a trabalhar para alguém. O dinheiro do leite que os turistas pagavam (10 euros) era para o dono do supermercado, que dava 1 euro a cada mendigo que lá levasse um estrangeiro. A única pessoa a enriquecer aqui era o senhor do supermercado! Esta história abriu-me a porta para muitas outras questões que me fizeram perceber que simplesmente dar dinheiro a qualquer pessoa que nos peça pode não ser a forma mais útil de ajudar. Ou pelo menos aquela que terá um maior impacto para erradicar aquela situação.
Decidi então que continuaria a doar 1 euro por dia enquanto estivesse a viajar, mas não o daria diretamente a ninguém. Ao invés, iria destinar esse dinheiro a uma ONG ou a um grupo local que fizesse alguma coisa necessária para melhorar a vida daquela população. Assim, quando regressei a Portugal, dos 254 dias em que estive em viagem, contabilizei quantos dias passei em cada país que visitei e doei as respetivas quantias para ONG locais, que fui conhecendo à medida que fui viajando.
Desde então que adquiri a prática de fazer donativos mensais de uma parcela do meu ordenado (5%) a ONGs que acompanho e às quais reconheço valor.
Sapa, Vietname, janeiro 2019:
Este episódio aconteceu nas montanhas do norte do Vietname, em Sapa. Esta é uma zona habitada por várias minorias étnicas, por entre as quais a minoria Hmmong. Quando lá estive fiquei a dormir na casa de uma família Hmmong, por indicação de uma rapariga que conheci durante a viagem. Apenas uma pessoa, a mulher, falava inglês. Chamava-se Mae Mo e durante os dois dias que lá passei tratou-me como sua filha. Numa das muitas conversas que tivemos a Mae Mo perguntou-me se eu já tinha estado em Hanói, Halong Bay, Ninh Binh, Hói An e uma série de locais do Vietname, onde efetivamente eu já tinha estado. Com um ar de espanto, respondi-lhe, “Sim, já estive nesses sítios todos. Fogo, estou a ver que a Mae Mo já viajou imenso”. Nisto, ela soltou uma gargalhada e retorquiu, “Não, eu nunca lá fui, nem à capital. Nunca saí daqui. Só conheço esses nomes porque é onde todos os turistas vão, mas nem sei onde ficam”. Engoli a resposta em seco e durante alguns instantes só queria um buraco onde me meter. Eu, com 24 anos, conhecia melhor o seu próprio país do que a Mae Mo.
Pus-me a refletir como é que me sentiria se em Portugal conhecesse um australianos que conhecia melhor o meu país do que eu, se isso me faria sentir injustiçada, quanto à minha condição económica. Este episódio fez-me refletir sobre a responsabilidade social que temos quando visitamos locais cuja população não tem possibilidade de viajar. Nestas situações, nós somos muitas vezes uma porta para o resto do mundo e a opinião ou ideia com que aquela pessoa ficará do mundo poderá ser aquela que nós deixamos. Temos, por isso, uma responsabilidade diferente daquela que teríamos se tivéssemos a conversar com um alemão, que pode ler, estudar e viajar. Não quero com isto parecer que me estou a colocar numa posição arrogante e presunçosa. Mas sendo um facto que esta acessibilidade ao mundo é diferente, podemos tentar ao máximo reduzir esse gap.
Estes episódios e muitos outros são relatados no meu livro “Solo”, que podes comprar diretamente comigo.
De seguida, compilei uma série de situações gerais em que a noção do privilégio é mais evidenciada, no contexto de viagem.
Situações em viagem onde a noção de privilégio mais se evidencia:
- Quando viajamos para locais cujos habitantes não têm possibilidade para viajar. Os turistas são o grupo privilegiado na medida em que usufruem de uma vantagem que a população local não consegue gozar, nomeadamente a de viajar;
- Sempre que frequentamos restaurantes e bares cujos preços são demasiado altos para a população local poder pagar. Estes acabam por ser locais apenas frequentados por turistas, pois estes são os únicos com condições económicas para tal. Muitas vezes as pessoas que trabalham nestes locais confeccionam pratos e comidas, ou servem-nos produtos que elas próprias não poderiam pagar;
- Quando alguém nos vêm pedir dinheiro, por saber, à partida, que somos estrangeiros, concluindo por isso que teremos muito dinheiro;
- Quando sentimos que os outros nos estão a tratar de uma forma diferente por sermos estrangeiros. Sempre que somos tratados com mais cuidado, respeito e consideração, pela nossa condição social. (Atenção que isto nem sempre se verifica e pode ser difícil perceber quando é que isto acontece. A maior parte das vezes, felizmente, somos bem tratados por pura hospitalidade por parte de quem nos recebe). Não se trata de sermos mais respeitados por sermos estrangeiros mas sim de sermos mais respeitados por termos mais dinheiro;
- Sempre que somos alvo de um esquema turístico. Neste caso dificilmente nos vamos sentir privilegiados. É mais provável que nos sintamos injustiçados. Porém, só estamos a ser alvo de um esquema turístico porque, à partida, temos mais dinheiro.
Estas são apenas algumas das situações pelas quais já passei, mas poderão haver muitas outras. Até aqui podemos então concluir que a noção do privilégio realmente existe e que se evidencia de uma forma mais proeminente quando estamos a viajar. Vamos agora refletir sobre o sentimento de culpa que este nos faz sentir e que estratégias é que temos à nossa disposição para tentar reduzir este gap.
A consciência do privilégio adquire quase sempre uma conotação negativa, que nos faz sentir culpa e embaraço. O motivo pelo qual nos sentimos culpados é porque achamos que uma determinada situação não é justa. Isto é, porque achamos que não fizemos mais do que aquela pessoa para merecer ter mais dinheiro do que ela. Por outras palavras, parece não haver meritocracia.
E não há, pelo menos de uma forma direta. Mas a culpa disso também não é diretamente nossa. Não está ao nosso alcance o poder de decidir que esta pessoa viverá com mais dinheiro do que aquela. Na verdade nós nem sequer escolhemos nascer em Portugal, foi uma coisa que nos aconteceu. Foi um evento totalmente aleatório. Como tal, não nos devemos sentir culpados, ou responsabilizados, por uma situação sobre a qual não tivemos liberdade de escolha.
Existem várias formas para criar um impacto positivo do ponto de vista social:
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Apoiar a população local:
É certo que não temos a obrigação de ajudar a população local do país que estamos a visitar, mas acredito que temos o dever moral de o fazer. Se temos 1000 euros para ir à Tailândia ou à Turquia, se calhar também temos 50 euros (5%) para apoiar uma causa desse país e para ajudar um grupo de pessoas. Bem sei que junto com esta questão vêm sempre muitas outras relacionadas com a integridade das ONGs e a validade do seu trabalho, mas também podemos pesquisar de antemão, ou até perguntar diretamente à população local que organizações é que efetivamente apoiam as suas causas; (Em baixo, nas notas, vou deixar algumas sugestões)
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Promover a economia local:
Evitar restaurantes, hotéis e supermercados de grandes marcas internacionais. Geralmente estas marcas têm sede num país desenvolvido e, por isso, a maior parte do dinheiro que estamos a deixar lá vai servir para encher os bolsos de um milionário americano, em vez de ajudar a população local. Para contrariar esta tendência podemos e devemos frequentar espaços locais, geridos pela população de lá. Só assim garantimos que o dinheiro que deixamos lá, efetivamente fica lá;
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Conversar:
Pode não ser propositado mas, por vezes, quando estamos a viajar, gera-se um gap entre nós e eles. Seja pela diferença cultural, por vergonha de falar para desconhecidos ou até pela questão do privilégio. Mas acreditem que uma das melhores coisas que podemos fazer em viagem é perder essa vergonha e meter conversa com alguém de lá. Não há melhor forma de quebrar barreiras do que a conversar. E o mais provável é percebermos que os problemas da vida daquela pessoa não são muito diferentes dos nossos, apenas de todas as coisas que nos separam. No fundo, descobriremos que com mais ou menos dinheiro, mais ou menos casas, mais ou menos viagens, somos todos muito mais iguais do que diferentes. Todos nós procuramos estar bem, apenas encontramos formas diferentes de o conseguir. Vai que na volta ainda descobrimos que privilegiados são eles.
Cada vez é mais fácil viajar, cada vez se viaja mais e por vezes isto é visto como algo negativo, porque só se têm em conta o impacto negativo da viagem. Mas hey, nós somos seres humanos, conscientes, com poder para manipular as nossas ações e alterar os nossos comportamentos. Por outras palavras, temos a possibilidade de alterar as nossas atitudes e de fazer da viagem algo positivo para os que vão e para os que lá estão. Mais do que nunca, ouve-se falar de turismo sustentável. Mas o turismo sustentável não embarga só a temática ambiental, e não está só relacionado com o desperdício de plástico ou de reduzir viagens de avião. O conceito de turismo sustentável detém também uma componente social em que se procura deixar um impacto positivo, ou pelo menos neutro, na população dos locais que visitamos.
Depende de nós utilizar as viagens que fazemos para crescer nesse sentido.
Antes de terminar, deixo algumas sugestões de duas plataformas muito interessantes, para quem procura criar um impacto positivo.
Sugestões:
- How Rich Am I, é um plataforma onde por meio do nosso país e rendimento anual, podemos perceber que impacto é que teria no mundo se fizessemos uma doação de 10% desse valor;
- A Giving Well e Giving What We Can são associações cujo objetivo passa por perceber de que forma é que um donativo pode ser mais eficiente . Isto é, onde é que por exemplo com 1 euros salvamos mais vidas? Em que causa é que o nosso donativo tem um impacto maior. Isto serve fundamentalmente para aqueles que não sabem onde doar, ou não sabem se podem confiar. Estas plataformas ajudam-nos a perceber que causas são mais urgentes neste momentos e em quais delas é que a mínima quantidade de dinheiro poderá ter uma maior efetividade na causa.
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