Esta é a segunda crónica de um conjunto de quatro crónicas que pretendem abordar o tema dos Direitos Humanos no Egito. A primeira crónica aborda os Direitos Humanos de uma forma geral enquanto que as crónicas seguintes relatam situações que vivi durante a viagem que fiz ao Egito e que me alertaram para a fragilidade destes direitos neste país. Neste artigo vamos conhecer a Cidade do Lixo, no Cairo, e perceber de que forma esta esconde uma forma de discrimnação para com os coptas, uma minoria religiosa cristã.
O dia já ia longo – tínhamos acordado no Deserto Branco, a tempo do nascer do sol, e de seguida fizemos duas horas de viagem desde o nosso pouso até ao oásis de Bahariya. Daqui, enfrentamos mais cinco horas de viagem deserto adentro até ao Cairo. Eram cinco da tarde e estávamos na estação de camionagem do Cairo, a comprar bilhetes de autocarro para Luxor. Pela frente tínhamos ainda doze horas de autocarro que nos levariam à cidade de Luxor, o nosso próximo destino.
Ainda na estação de camionagem do Cairo, fui até uma pequena mercearia comprar algo para comer durante a viagem. Entrei numa pequena loja coberta por todo o tipo de snacks, desde bolachas, batatas fritas a croissants e chocolates, bem ao estilo do Cairo. Estava entretida a escolher umas bolachas quando um rapaz, que trabalhava lá, se abeirou de mim e me perguntou, baixinho, “Hey, tu, és cristã?”.
Fui surpreendida pela intervenção do moço, tão estranha quanto inusitada, e levantei lentamente a cabeça, enquanto interiorizava a questão que me fizera. Por momentos, fiquei paralisada, sem saber que resposta dar. Sabia que não devia dizer que não tinha religião. Para “eles” é muito pior não ter religião do que ser cristão. Eu própria já tinha dito, na Turquia, que não era crente e levei uma lavagem cerebral de duas horas.
Mas aquele tipo estava a abordar-me assim, do nada, pelo que tive receio em dar uma resposta honesta. “Será que devo dizer que sim? Não posso dizer que sou muçulmana porque isso nota-se claramente”, pensei. Nisto, atirei um “sim” cheio de medo, com um olhar que mais parecia o do gato do Shrek. Foi então que o moço sobe a manga da camisola e me mostra uma tatuagem minúscula, com uma cruz, escondida. “Eu também”, responde-me. Paguei os snacks e vim embora.
Já no autocarro, e durante a viagem até Luxor, fiquei a pensar na atitude do rapaz. Comecei a pesquisar sobre a presença do cristianismo no Egito e foi então que fiquei a conhecer a realidade do Bairro do Lixo e de que como este preconiza uma extrema forma de discriminação para com os cristãos coptas.
A realidade da Cidade do Lixo no Cairo:
Chama-se “Cidade de Zabbalin”, que significa cidade dos recoletores de lixo. É um bairro maioritariamente habitado por cristãos coptas que, devido à sua condição religiosa, são discriminados pela maioria muçulmana. Os dados não permitiam confusões – segundo um estudo do Pew Research Center, o Egito foi classificado como o quinto pior país do mundo no que toca à liberdade religiosa. Em 2020, foi a vez da Organização Freedom House considerar o Egito como um país não livre.
O Cairo é uma cidade com excesso de população, onde o número de habitantes extrapolou os 20 milhões. Para piorar, é uma cidade sem um sistema de gestão de resíduos eficiente. E é aqui que entra o fator de discriminação – todo o lixo proveniente da cidade de Cairo vai parar a este bairro, onde os cristãos têm a função de o separar.
Todos os dias, pela manhã bem cedo, os homens do bairro saem para a cidade em carrinhas de caixa aberta. Recolhem todo o lixo que conseguem encontrar e regressam com as carrinhas cheias, empilhadas de lixo até mais não ser possível. Despejam o lixo nas ruas, nos prédios, pelas escadas acima. E todos no bairro deitam mãos ao trabalho. Passam os dias de cócoras, na labuta, a separar o lixo orgânico daquilo que é plástico, papel ou vidro. Mas desengane-se quem pensa que isto é uma forma de rendimento. Isto não é uma profissão e ninguém lhes paga por este serviço público. O lixo orgânico que recolhem serve para alimentar os animais (galinhas, cabritos, porcos), que mais tarde servirão de alimento.
Por serem cristãos, não conseguem encontrar um emprego digno e não lhes resta mais nada se não procurar no lixo aquilo que mais ninguém quer. São mais de 60 mil aqueles que integram o sistema de recolha de lixo do Cairo. Mas a xenofobia exercida para com esta minoria religiosa atinge patamares ainda mais surpreendentes – 84% dos egípcios apoia a pena de morte, ato praticado no país, para quem deixa de seguir o islamismo. Em setembro de 2020 uma associação que defende coptas cristãos, Coptic Solidarity, alertou para a prática de rapto e tráfico de mulheres que são convertidas, à força, ao Islamismo e são obrigadas a casar com muçulmanos.
O que me levou a questionar, seria o rapaz da mercearia um cristão disfarçado de muçulmano, que escondia a sua religião para poder ter um emprego?
Alguns vídeos/documentários sobre a cidade do lixo:
Living in the Garbage City of Cairo
Zabbaleen: Trash Town. A whole community in Egypt that lives on rubbish
… difícil manter a sanidade mental ;