10 dias de isolamento – o relato completo da minha experiência num retiro Vipassana

No dia vinte de maio, quatro dias depois de ter chegado ao Nepal, chegou o dia de enfrentar o maior desafio desta viagem – o retiro espiritual. Estava prestes a embarcar numa experiência de total isolamento, onde me absteria de comunicar e de interagir com o mundo e com os outros. Nos dez dias seguintes, estaria voltada para dentro, para mim, com poucas certezas sobre o que iria sair dali.

Nesse dia acordei bem cedo e tomei um grande pequeno almoço, adivinhando já a fome que poderia vir a sentir nos dias seguintes. Como só tinha de me apresentar no centro de meditação às duas da tarde, ainda tinha a manhã livre. Aproveitei para dar uma volta por Thamel, comprei umas coisitas que precisava e aluguei um saco-cama, por trinta cêntimos ao dia, caso fizesse frio de noite. No final das compras sentei-me num café, pedi um capucchino e tentei preparar-me, mentalmente, para o que aí vinha. Estava surpreendentemente calma.

Umas horas mais tarde estava à porta do hostel, à espera que aparecesse um táxi, quando uma moça que trabalhava lá na receção me perguntou para onde é que eu ia. Assim que lhe disse que ia fazer um retiro vipassana em Kirtipur, ela mirou-me de soslaio e disse-me algo como “Ei, boa sorte, já fiz um e não é nada fácil”, deixando transparecer alguma piedade para com a minha condição. Não lhe dei ouvidos e continuei atenta à estrada, com receio de que tal comentário fosse apagar a tranquilidade que estava a sentir naquele momento.

Eis que um homem, percebendo que precisava de transporte, apareceu para me oferecer os seus serviços. Mandamos uns valores ao ar até chegarmos a um preço que me pareceu justo e lá fomos. Durante a viagem, que durou quase uns trinta minutos, comecei a sentir um nervosismo a querer sair cá pra fora, uma certa inquietação. Eu sabia que estava prestes a embarcar numa experiência alucinante, mas não sabia o que é que essa experiência ia fazer de mim.

Sempre que quero muito fazer alguma coisa tenho o hábito de me perguntar se há a possibilidade de morrer caso o faça. Se houver, obrigo-me a alguma reflexão antes de agir. Porém, se não existir esse risco, quase que me obrigo a ter de fazer isso, pois concluo que, afinal, os medos e receios que me repelem são uma grande treta e, por isso, só têm é de ser enfrentados. Convenhamos, era altamente improvável morrer num retiro espiritual e, por isso, a decisão de ir foi apenas uma questão de tempo até me sentir preparada para enfrentar os meus fantasmas.

Comigo, só levava uma regra – não desistir. Tinha a consciência de que ia ser duro, mas também sabia que ia ter de aguentar, por muito que me estivesse a custar. Eu sabia que, se me permitisse sequer equacionar a possibilidade de desistir, provavelmente ia vacilar assim que começasse a ficar difícil. E, por isso, ficar até ao fim, independentemente do que acontecesse, era um ponto bem assente na minha cabeça. No final de contas, o mindset era só um – aguentar.

Assim que chegamos, olhei para a entrada do centro e não vi ninguém a não ser um homem sentado a fumar um cigarro – não parecia ser segurança nem parecia fazer parte do centro. Entretanto, enquanto tirava as mochilas do carro, uma rapariga estrangeira passou por mim e entrou no centro. Decidi segui-la.

A entrada no centro

Fomos ambas encaminhadas para uma mesa, numa espécie de varanda ao ar livre, onde estavam reunidas algumas pessoas a preencher uns papéis. Algumas conversavam, outras estavam caladas. Inicialmente não percebi se todos faziam parte do retiro, enquanto alunos, ou se já trabalhavam lá, dado o à vontade com que falavam, como se já se conhecessem há séculos. Também não sabia se já tínhamos de estar em silêncio ou não, por isso decidi ficar calada e esperar que viessem falar comigo. Deram-me um papel para preencher e pediram-me que entregasse os meus valores.

– Que tipo de valores? – perguntei.

– Os que estão aqui escritos – disse-me o homem, apontando para uma folha, afixada na parede, onde estavam todos os itens que eram proibidos no centro.

Desde telemóveis, computadores, mp3 e todos os tipos de dispositivos tecnológicos, bem como livros, cadernos, auscultadores e material de escrita. Meti tudo numa saca, à qual juntei os meus documentos pessoais e o meu dinheiro, e fui então depositar num cacifo, cuja chave entreguei à pessoa responsável. Depois disto, uma moça asiática muito bonita veio ter comigo para me acompanhar até ao meu quarto. A minha cama era a número doze do bloco E, que ficava no fundo da escadaria que separava o centro em duas partes – a parte de cima para os homens e a parte de baixo para as mulheres. O bloco E era um barraco sem janelas, junto à casa de banho, feito de paredes de cimento e com uma chapa por cima, a servir de telhado. Lá dentro, dezassete camas estavam dispostas numa fileira, até lá ao fundo, separadas por placas de madeira com um metro e meio de altura, que dividiam cada duas camas num “quarto”.

O bloco E, onde dezassete raparigas dormiam
A minha cama no último dia
A minha cama no primeiro dia

O meu “quarto” tinha a cama onze, onde estava uma rapariga loirinha, e a cama doze, a minha. A rapariga que me acompanhava pousou então as mochilas junto aos meus aposentos e disse-me que tinha de fazer a cama, entregando-me um lençol e um cobertor para as mãos. Continuava sem perceber se já tínhamos de estar em silêncio absoluto ou se podíamos conversar. Algumas raparigas conversavam umas com as outras como se estivessem num bar e outras estavam já em modo contemplativo. A rapariga loira com quem dividia o “quarto” não parecia querer falar e por isso nem sequer tentei encetar conversa. Fiz a cama, arrumei as minhas roupas e fui novamente juntar-me ao pessoal lá em cima.

Por volta das cinco da tarde, o gongo tocou pela primeira vez e todas as raparigas foram encaminhadas para o refeitório. Lá, uma senhora pediu-nos que escolhêssemos o nosso lugar, que deveríamos manter até ao final do retiro. Havia dois tipos de lugares disponíveis – uns à mesa, com uns bancos de madeira, e outros no chão, com uma pequena mesa individual com vinte centímetros de altura. Escolhi uma das mesas do chão, esquecendo-me de que iria passar a maior parte dos meus dias sentada no chão, de pernas cruzadas e que por isso talvez fosse melhor poder tê-las esticadas, pelo menos às refeições. Nos dias que se seguiram, arrependi-me largamente do lugar que tinha escolhido, quando olhava para as raparigas à minha frente, sentadas em bancos, com as pernas esticadas. Depois de ter escolhido o meu pouso, uma senhora deu-me um papel e uma caneta, onde deveria escrever o meu nome, que ficaria em cima da mesa. Deu-me também um copo, uma colher e um prato de alumínio, que iria usar todos os dias até ao final do retiro – no final de cada refeição, cada uma deveria lavar o seu prato e deixar em cima da sua mesa. Ou seja, os lugares em que comíamos e a loiça que usávamos deveriam ser os mesmos ao longo dos dez dias seguintes, por forma a tornar os dias os mais iguais possíveis, sem quaisquer distrações. No final das explicações serviram-nos, excecionalmente, o jantar, já que nos dias que se seguiriam não faríamos essa refeição.

O refeitório das mulheres

Depois de comermos e de lavarmos os pratos fomos encaminhadas, em conjunto com os rapazes, para uma sala onde um senhor nos esperava. Sentamo-nos no chão, nas almofadas que estavam ordenadamente distribuídas, e aguardamos. Era a sessão de boas-vindas a partir da qual se iniciava, oficialmente, aquele que era chamado de silêncio nobre. O silêncio nobre é, tal como o nome indica, uma espécie de pacto de silêncio em que todos nós, alunos, prometemos nos abster de qualquer forma de comunicação, seja ela através da fala, de gestos, da escrita ou até do próprio olhar, durante os próximos dez dias. A prática do silêncio nobre é uma das muitas regras do centro, à qual se juntam os cinco preceitos, uma espécie de cinco mandamentos que deveríamos, rigorosamente, seguir. Nomeadamente, abstermo-nos de matar qualquer ser vivo, de roubar, de praticar qualquer atividade sexual, de mentir e de consumir algum tipo de intoxicantes (drogas, álcool, tabaco, comprimidos psicóticos, etc). Também não podíamos ler, escrever ou ouvir música. Em suma, não podíamos fazer nada que nos distraísse – o objetivo era, precisamente, afastar todas as fontes de entretenimento capazes de nos distrair e de nos fazer entrar em modo de piloto automático. Só assim seria possível conseguirmo-nos concentrar na prática da meditação.

Por todo o lado havia placas que relembravam a prática do silêncio nobre
Uma lista com os cinco mandamentos do vipassana podia ser também encontrada

Caso precisássemos de alguma coisa, em caso excecional, havia pessoas com quem poderíamos falar. Na ala das mulheres havia três pessoas destinadas para esse efeito – uma senhora mais velha, nepalesa, que trabalhava naquele centro a tempo inteiro e outras duas, francesas, que eram voluntárias naquele retiro. Quem faz um retiro vipassana pode, no futuro e se assim entender, oferecer-se como voluntária para ser ajudante num próximo retiro. E este era o caso destas duas moças.

Foi-nos também brevemente explicado como é que seria a nossa rotina diária. Às quatro e meia da manhã tocaria o gongo e todos deveríamos prepararmo-nos para a primeira meditação, que começaria às cinco da manhã e duraria até às seis e meia, hora do pequeno almoço. Depois de uma hora e meia de descanso, teríamos então mais três horas de meditação, à qual se seguiria o almoço, por volta das onze da manhã. Com este, mais duas horas de descanso antes de mais quatro horas de meditação seguidas. No final do dia, às cinco da tarde, quem estava a fazer o retiro pela primeira vez, podia lanchar. Caso fosse o segundo ou terceiro retiro, apenas poderia beber um copo de água com limão. No final do lanche, mais três horas de meditação. Às nove e meia da noite as luzes eram apagadas. Fomos avisados de que seria difícil manter quer o silêncio quer a concentração constante na meditação, mas que saber aceitar e ultrapassar essas dificuldades fazia parte do objetivo do retiro. No final desta sessão, que durou mais de duas horas, fomos encaminhados para os nossos quartos e as luzes foram apagadas. O dia seguinte seria o dia um, de dez.

Deitei-me na cama sem sono a pensar no que raio estava ali a fazer. Afinal, que motivo leva uma pessoa a sujeitar-se a tais condições e o que é que eu, em particular, procurava com tudo aquilo? O que é que eu queria provar? Até onde é que eu queria ir? Ao contrário de muitas pessoas, eu não estava à procura de uma resposta em concreto para nenhum problema – em primeiro porque felizmente não tinha nenhum problema e em segundo porque, a seu tempo, a viagem já me trouxera muitas das respostas que eu procurava, muitas delas a perguntas que eu não tinha sequer feito. Neste sentido, eu não buscava nenhum retorno em particular. Também não acho que estivesse a tentar provar alguma coisa a alguém, nem mesmo a mim própria – sou das pessoas menos competitivas que conheço e nunca tive problema em dizer que isto ou aquilo não é para mim.

Aquilo que me atraía nesta experiência era a dificuldade, o desafio que encerrava. Eu sabia que ia ser duro e, no fundo, eu queria saber como é que ia reagir a tais dificuldades. Afinal, o que é que isto revelaria sobre mim mesma? Era pura e simplesmente o desafio e a curiosidade em descobri-me em tais circunstâncias. Geralmente temos a tendência de achar que se a ou b acontecesse na nossa vida, faríamos c e d. Mas vermo-nos nessas situações é totalmente diferente de imaginarmo-nos nelas, e eu queria estar nelas para ver o que acontecia dentro de mim.

Não sei a que horas adormeci nesse dia, pois como tinha entregue o telemóvel, não sabia que horas eram. Não tinha levado nenhum relógio comigo. Sei que acordei, a meio da noite, com o som do gongo a ecoar na minha cabeça como se tivesse levado uma estalada. À minha volta, sentia a movimentação própria das raparigas a levantarem-se e a vestirem-se. Não havia luz, e também não tinha nenhuma lanterna para conseguir encontrar as minhas roupas – depois de lavar os dentes, vesti umas leggings e uma camisola por cima do pijama, um casaco por cima e lá fui, seguindo as outras raparigas até à ala de meditação. À porta da sala tinha um quadro, onde estava apontada a nossa rotina diária, e uma folha que dizia “Day one”, junto com uma frase budista sobre a importância da meditação. Deixei os chinelos à entrada e entrei na sala, procurando a almofada que me estava destinada e que iria usar durante os próximos dez dias. A ala era uma sala dividida em duas áreas, com umas almofadas no meio a separar – a parte esquerda para os rapazes e a parte direita para as raparigas. Cada uma das partes tinha uma porta que dava acesso a cada uma das áreas respetivas. Lá à frente, no fundo da sala, estava um grande cadeirão onde o professor se sentava.

Ala de meditação, onde passamos cerca de treze horas por dia

O meu lugar estava na penúltima fila, junto à parede, o sítio ideal para poder encostar as costas de vez em quando, pensei, até ter visto uma das responsáveis chamar a atenção à rapariga da frente, que tivera a mesma ideia. Assim que o gongo voltou a tocar, marcando o início da primeira hora de meditação, o professor entrou imediatamente na sala, como se já estivesse do outro lado à espera do toque. Também o professor tinha uma porta só para ele, que dava acesso à sua área privada. Nisto, o professor entrou, sentou-se no seu cadeirão, cruzou as pernas, fechou os olhos e começou a meditar. Estava à espera de que ele dissesse alguma coisa. Sabia que nós, alunos, não podíamos falar, mas talvez ele pudesse cumprimentar-nos ou dar algumas indicações para a prática de meditação. Mas não, ele pura e simplesmente fechou os olhos e ficou em silêncio. À minha volta, todas as raparigas o imitaram – todas elas cruzaram as pernas e fecharam os olhos, procurando, pela primeira vez nos dez dias que se seguiram, estar conscientes.

Já eu estava ali, mas, ao mesmo tempo, não estava – tinha tanto sono que não me conseguia sentir realmente desperta. O facto de não poder falar nem interagir com ninguém também não ajudava a acordar. Foi assim que, durante os primeiros três dias, passei a primeira meditação da manhã – completamente entorpecida e em estado de sonolência. Tentava adormecer, mas não conseguia cair no sono profundo, pois estava sentada e não me podia apoiar na parede. Mas também não conseguia manter-me acordada e a todo o momento sentia a cabeça a tombar. A dada altura, não aguentei mais, trouxe os joelhos para o peito e deitei a cabeça. Deixei-me estar, naquele limbo entre o estado de sono e de vígia.

Durante este tempo tinha muitos sonhos – provavelmente não tinha mais sonhos do que o normal, mas, como estava mais desperta, lembrava-me deles com maior clareza. Sentia-me confusa, completamente alienada de mim, sem saber o que é que era real – se o sonho, se o retiro. Era uma espécie de situação limite, em que eu tinha consciência de que estava a dormir, mas ainda assim duvidava e procurava discernir em que realidade é que estava. Nisto, acordava repentinamente, como se tivesse levado um choque elétrico, e tomava consciência de que, afinal, ainda lá estava, no retiro. Todos os sonhos, mesmo os maus, eram melhores que aquela realidade.

Por volta das seis e meia da manhã, uma hora e meia depois, o gongo soava novamente, deixando adivinhar a hora do pequeno-almoço. De forma ordeira e sempre em silêncio, deixávamos a ala de meditação e íamos para o refeitório. O pequeno-almoço era quase sempre o mesmo – sopa de lentilhas, ou dal bhat em nepalês, com legumes salteados – por vezes davam duas fatias de pão de forma para molhar na sopa e isso era o mais próximo que tínhamos do pequeno-almoço ocidental. Num dos dias serviram uma espécie de papa de arroz, ligeiramente adocicado, que me deixou logo mais animada. Para beber havia sempre chá preto com leite, ou só chá. Depois de tomarmos o pequeno-almoço e de cada uma lavar a sua loiça, estávamos livres até às oito horas da manhã, altura em que começava uma nova ronda de meditação.

O pequeno almoço do último dia. Cada mesa tinha um papel com a nossa identificação

Não sei o que é que as outras raparigas faziam, mas depois do sofrimento da primeira meditação e já com a barriga cheia, ia direta para a cama dormir. Efetivamente, mesmo que não tivesse sono, não havia mais nada para fazer – além de meditar, as opções que tínhamos eram caminhar ou ficar a olhar para as árvores.

Por volta das oito horas da manhã o gongo ecoava novamente e lá íamos nós, tal e qual robôs, para a ala de meditação. Por esta altura, já me sentia suficientemente descansada e já me tentava focar na respiração e concentrar-me na meditação. Porém, tínhamos três horas de meditação pela frente e os meus joelhos não aguentavam mais do que quinze minutos na mesma posição. Por muito que eu tentasse ficar sossegada, mais tarde ou mais cedo as minhas pernas começavam a doer, até um ponto de tal forma insuportável que tinha de abrir os olhos e mudar de posição. No canto da sala tínhamos várias almofadas mais pequenas, que podíamos usar para colocar por baixo do rabo ou por baixo dos joelhos, de forma a ficarmos mais confortáveis. Cada vez que abria os olhos, olhava à minha volta e via toda a gente completamente concentrada, quase a atingir o nirvana. Eu parecia ser a única que não aguentava nem dez minutos, o que me fazia sentir frustrada.

Na meditação é suposto que nos foquemos no processo de respiração – normalmente, escolhemos um ponto do corpo onde seja mais fácil para nós sentir a respiração, como a ponta do nariz, ou o peito, e colocamos nessa zona toda a nossa capacidade de concentração, de modo a sentir, da forma mais subtil possível, a respiração a ocorrer. Contudo, manter a concentração na respiração durante um longo período de tempo não é fácil e é normal que a mente seja assaltada por múltiplos pensamentos. Não há nenhum problema nisso, é completamente natural. O importante é tomar consciência de que a mente divagou e fazer o esforço de a voltar a trazer para a respiração. Por outras palavras, o exercício da meditação não está em abolir os pensamentos, mas sim em treinar a nossa capacidade de reconhecer que a mente dispersou e voltar a trazer a atenção para o ponto inicial, para a respiração.

Todavia, quando conseguia acalmar-me e abstrair-me das dores nos joelhos, era assolada por pensamentos horrendos e destrutivos, cada um mais horrível do que outro. Normalmente, o tipo de pensamentos que me surgem na meditação são, por entre uma ou outra memória, coisas triviais como ter de arrumar o quarto ou pôr a leitura em dia. Contudo, no retiro e principalmente durante os primeiros dias, os pensamentos que me surgiam eram projeções de morte – não a minha morte em particular, mas a dos outros, a de pessoas que eu estimo. Imaginava situações como a minha mãe a morrer à minha frente, o funeral do meu pai ou receber a notícia do falecimento do meu irmão. Eram pensamentos inusitados, sem cabimento nenhum e sempre ligados à morte da minha família.

À medida que ia tentando afastar-me destes pensamentos e voltar a focar-me na meditação, mais a ideia de morte aparecia na minha mente – já não era só a família, mas também amigos e colegas, com mortes sangrentas e dolorosas. Comecei a ficar cada vez mais frustrada e desanimada – ora me doíam as pernas, ora não conseguia concentrar-me, ora, quando conseguia, só pensava em morte. Por vezes desesperava, baixava a guarda e começava a chorar. Parecia que nada estava a meu favor e quanto mais eu tentava sossegar, mais nervosa eu ficava. Não estava a ser fácil.

Decidi pôr em prática a desidentificação do eu, que aprendera no Projeto Mindfulness, e que mais não é do que tomar consciência de que nós não somos a nossa mente, mas sim algo superior. A nossa mente é não só o produto das experiências e aprendizagens que acumulamos, mas também o resultado do ego e de uma série de outras limitações, que não fazem parte do nosso eu interior. A desidentificação do eu é a transcendência do ego. É entendermos que o nosso verdadeiro eu não é a nossa mente nem os nossos pensamentos. É algo superior.

Pôr em prática esta conceção ajudou-me a distanciar-me destes pensamentos, a desidentificar-me deles, a deixar de os considerar como parte integrante do meu ser. Passei a observar os pensamentos sem mergulhar neles, isto é, sem permitir que estes provocassem emoções em mim. Continuei a ver a minha família a morrer à minha frente, das formas mais terríveis possíveis, mas, desta vez, não me permitia reagir. Apenas observava tais pensamentos, impávida e serena. E assim, à medida que os observava, sem os abraçar nem os repelir, eles iam passando.

Hoje, com alguma clareza e distanciamento, acredito que estes pensamentos terríveis foram apenas uma espécie de rasteira mental, por parte da minha mente, para me obrigar a sair dali. Convenhamos, estar em total isolamento não é fácil nem é compatível com a índole do ser humano, nós somos seres sociais que precisamos de interação para nos sentirmos bem. Sujeitarmo-nos a um estado de isolamento total pode ser demasiado bruto para o nosso cérebro e para o nosso corpo. Como tal, acredito que estes pensamentos foram um embuste por parte da minha mente para me tentar fazer desistir. No fundo, a minha mente estava a confrontar-me com um dos meus maiores medos, o de perder a minha família, para me causar um sofrimento tal que me levasse a desistir.

Ao longo destes primeiros dias ofereci múltiplas resistências – as permanentes dores nas pernas, os pensamentos de morte, a inquietação constante – foram tudo formas de tentar resistir ao isolamento que estava a impor a mim própria. À medida que me ia desidentificando dos pensamentos, eles perdiam força e, por volta do quarto ou quinto dia, extinguiram-se por completo. Comecei a conseguir focar-me durante mais tempo na meditação e, quando me distraía, era acometida por outro tipo de pensamentos, menos dolorosos.

Depois destas três horas de meditação matinal, o gongo soava novamente, advertindo-nos da hora de almoço – esta era uma das melhores partes do dia, pois além de comermos tínhamos no total duas horas de descanso, a maior pausa do dia. A comida era, à semelhança do pequeno almoço, sempre a mesma – sopa de lentilhas, legumes salteados com especiarias tipicamente asiáticas e arroz. Esta era a última refeição oficial do dia por isso, durante os primeiros dias, enchia sempre a barriga com arroz, para garantir que não passava fome.

O almoço do último dia

Em dois dos dez dias deram-nos uma sobremesa ao almoço – iogurte natural com um fruto típico, muito doce, que, tal como o arroz doce ao pequeno-almoço, fizeram o meu dia. Ao meu lado, no refeitório, sentava-se uma moça muito alta de cabelos loiros e olhos azuis que mais tarde vim a saber que era francesa e que se chamava Pauline. Muitas vezes cruzava olhares com a Pauline, não só porque ela se sentava à minha beira, mas porque ela tentava, a todo o custo, cativar a atenção das outras raparigas – por vezes mandava uns sorrisos complacentes ou uns olhares prolongados, evidenciando uma vontade voraz em comunicar. Na hora de almoço, dava-me sempre a sua sobremesa ou os restos do seu arroz, em troca dos meus legumes, sem que as responsáveis reparassem. Durante dez dias não falámos uma com a outra, mas ainda assim conseguimos criar uma bonita empatia. Muitas vezes, a meio da meditação, vinha cá fora esticar as pernas e cruzava-me com ela – num olhar, sem nada dizer, dizíamos tudo – tínhamos de ser fortes e de aguentar. À exceção de um dia em que a Pauline quebrou realmente o pacto do silêncio quando me chamou, dizendo, “Anda aqui, tens mesmo de ver isto”, num desses intervalos. Quando me aproximei, ela apontou para uma colónia de formigas que transportava uma barata e um gafanhoto mortos, provavelmente em direção ao formigueiro. Esta situação pode parecer algo banal e desinteressante, mas nós estávamos, há dias, isoladas do mundo e impedidas de comunicar. À nossa volta tínhamos árvores e mais árvores e não se ouvia vivalma, além dos pássaros e dos macacos que por vezes apareciam sobre nós, na floresta que rodeava o centro. Fazia dias que não ouvíamos uma música ou uma voz. Pode parecer surreal, mas encontrar uma colónia de formigas a transportar insetos mortos foi das coisas mais excitantes que vimos naqueles dias.

Depois do almoço, tínhamos muito tempo livre, que geralmente usava para fazer a cama, dobrar as roupas e tomar banho. O banho era dos melhores momentos do dia, pois apesar de ser de balde, tínhamos água quente e era das poucas partes do dia realmente prazerosas para mim. Como não tinha relógio, não sei quanto tempo demorava a fazer todas estas tarefas – almoçar, lavar a loiça, tomar banho, fazer a cama, arrumar a roupa – mas sei que, num contexto de vida normal, diria que duas horas seria o tempo ideal para as concretizar. Porém, quando estamos completamente afastados de todas as distrações – telemóveis, televisões, músicas, séries, redes sociais, conversas, e por aí fora, fazemos todas estas tarefas em muito menos tempo. Como disse, não sei quanto tempo demorava mas sei que, depois de fazer tudo isto, deitava-me na cama e esperava longos períodos de tempo, tão grandes, que começava mesmo a ficar aborrecida e a ansiar pelo toque do gongo. Ou isso ou então era aquela típica ilusão temporal em que quinze ou vinte minutos parecem demorar mais de uma hora a passar.

A casa de banho
A casa de banho
Onde tomávamos banho
A casa de banho

Num desses dias, reparei que uma moça estava a lavar a roupa à mão e lembrei-me de fazer o mesmo. Fui ter com uma das responsáveis e pedi-lhes um sabão, que me trouxeram pouco tempo depois. Foi assim que arranjei uma atividade que me fosse permitido fazer, além de meditar e olhar para o ar – lavar a roupa. Daí para a frente, durante todos os dias que se seguiram, em todos os intervalos que tinha, lavava a roupa – no primeiro intervalo do dia deixava a roupa de molho, no segundo intervalo esfregava a roupa com sabão, no terceiro torcia e estendia a roupa. No dia seguinte, repetia tudo igual. Desenvolvi assim uma espécie de rotina, com uma série de tarefas, que me obrigavam a manter a cabeça um pouco ocupada. O desespero de não ter nada para fazer levava-me a lavar só quatro ou cinco peças de roupa por dia, para ter mais para lavar no dia seguinte. Depois do império das formigas, lavar a roupa foi a segunda coisa mais excitante que arranjei para fazer naqueles dez dias.

Onde estendia a roupa

À uma da tarde tocava novamente o gongo, indicando-nos que deveríamos ir para a ala de meditação, para mais quatro horas de prática. Nem todas as meditações tinham de ser forçosamente na sala comum – algumas delas poderiam ser feitas no nosso quarto, desde que o professor assim quisesse. Mas ele nunca quis. Só por duas vezes, no segundo e nono dia, mandou-nos meditar dentro do nosso quarto, durante uma hora. Todo o resto do tempo foi passado dentro da ala de meditação. Uma, duas, três ou quatro horas de meditação é muito tempo para alguém que não tem muita prática, tal como eu e como quase todas as pessoas que lá estavam. Na verdade, mesmo para alguém com muita prática de meditação, é muito difícil manter a atenção e a concentração plena durante um período de tempo tão grande. Porém, e tal como nos foi dito na sessão de boas vindas, não conseguir era normal e aceitar essa condição fazia também parte do desafio.

Às cinco da tarde ouvia-se novamente o gongo, para a última pausa do dia. Durante este tempo, tínhamos a possibilidade de comer uma peça de fruta com bolachas, desde que estivéssemos a fazer o retiro pela primeira vez. As alunas antigas só tinham direito a um copo de água morno com limão.

A última refeição do dia

No final da refeição costumava trazer um copo de chá para fora do refeitório e subia até ao topo do edifício. Lá em cima havia uma varanda de onde se podia ver o pôr-do-sol sobre o vale de Kathmandu. Conseguia ver também uma espécie de descampado onde algumas vacas pastavam e onde uma dúzia de miúdos se encontrava todos os dias, por volta daquela hora, para jogar futebol. Atrás deles, havia dois prédios decadentes e umas tendas, onde algumas pessoas moravam, nos subúrbios da capital.

A única janela que tínhamos para a civilização

Todos os dias apreciava aqueles miúdos a brincar. Eles não sabiam, mas tínhamos um encontro marcado todos os dias, àquela hora – eles jogavam e eu observava-os, enquanto bebericava o meu chá antes que o gongo tocasse novamente. Ficava um pouco abatida sempre que os via a brincar – sentia que tanto para aqueles miúdos como para as pessoas que passavam esporadicamente no descampado, o dia tinha acontecido, a vida tinha andado para a frente. Somavam alguma coisa. Mas para mim não. A minha vida estava em pausa. Nada acontecia, tudo era igual ao dia anterior e o dia seguinte seria igual àquele mesmo dia.  Sentia-me como um recluso que observa o mundo exterior de dentro da sua cela. Mas a diferença é que eu estava ali por escolha minha, o que por vezes ainda me fazia sentir mais estúpida.

Depois desta pequena pausa de uma hora, voltávamos para a ala de meditação, para mais duas horas de prática, as últimas do dia. Por vezes conseguia concentrar-me na meditação nestas últimas duas horas, justamente por ser o último esforço do dia. Por outro lado, por vezes, sentia-me mais ansiosa e irrequieta do que o costume, precisamente por aquele dia estar quase a acabar, e não conseguia concentrar-me de maneira nenhuma. Vá-se lá entender a mente humana.

Por volta das oito horas da noite assistíamos a uma vídeo-aula, dada por Goenka, fundador do retiro e da técnica com o mesmo nome, vipassana. Goenka nasceu no Myanmar e aprendeu a técnica de meditação vipassana com um monge budista. Esta técnica foi ensinada inicialmente por Buda, mas já há muitos anos que estava esquecida e só era ensinada em alguns mosteiros mais remotos. Assim, e depois de catorze anos a aprofundar a técnica, Goenka mudou-se para a Índia, na década de setenta, e começou a partilhar os ensinamentos do vipassana a todas as castas da sociedade. O sucesso foi de tal forma grande que Goenka passou a lecionar cada vez mais cursos, chegando inclusive a dar um curso numa prisão indiana para mais de mil reclusos, a pedido do governo indiano, com o objetivo de acalmar os motins e confrontos internos. A técnica foi-se espalhando por todo o mundo e cada vez mais centros foram criados. Na impossibilidade de estar presente em todos os cursos, Goenka gravou dez vídeos, de uma hora cada um, para que estes fossem transmitidos nos centros de todo o mundo. Só assim poderia garantir que um curso na Argentina era ensinado exatamente da mesma forma que um no Myanmar. Neste sentido, às oito horas da noite, o nosso professor levantava-se da sua cadeira e metia uma cassete datada de 1983 dentro do antigo leitor de cassetes.

Nos vídeos, Goenka fazia uma contextualização do retiro – explicava que tipo de coisas era normal sentir e pensar em consequência do isolamento a que estávamos submetidos e consoante o dia em que estávamos. Explicava também em que é que consistia a técnica vipassana e como é que a deveríamos pôr em prática – nos primeiros dias deveríamos praticar o anapana, que implica concentrarmo-nos única e exclusivamente na respiração, com foco para a ponta do nariz. Deveríamos sentir o ar a entrar e a sair das nossas narinas e conseguir sentir e observar as suas particularidades, como, por exemplo, sentir que o ar que entra é mais frio do que o ar que sai ou conseguir sentir o ar que sai a tocar no lábio superior da boca. Só quando estivéssemos à vontade com a técnica de anapana e só quando a conseguíssemos praticar com alguma facilidade, é que deveríamos passar para a vipassana. Nesta, deveríamos prestar atenção a todas as sensações corporais que surgem aleatoriamente em diferentes partes do nosso corpo – desde pequenos choques que sentimos aqui e ali, a pequenas comichões, formigueiros, desconfortos e por aí fora. Para treinar o vipassana deveríamos fazer uma espécie de scan mental em que passamos por todas as partes corpo, calmamente, procurando reconhecer as mais pequenas e subtis sensações corporais. Depois de já termos aprimorado a técnica vipassana, por volta do oitavo dia, éramos então convidados a tentar associar cada uma dessas sensações corporais a uma determinada emoção ou pensamento. O objetivo no vipassana era aproximar a conexão entre o corpo e a mente e isso passava por conhecer as subtilezas do nosso corpo ao pormenor. Na verdade, a prática da meditação e o curso vipassana em si implicam, sobretudo, um exaustivo treino de mente, não muito diferente do treino que aqueles tipos que caminham em cima de vidros sem se cortarem fazem. É um treino de foco e de concentração onde capacitamos a nossa mente a um nível máximo.

Embora o vipassana seja um retiro espiritual, este não se alinha com nenhuma religião em particular, pelo menos em termos teóricos. Porém, durante as palestras, Goenka socorria-se imensas vezes em histórias de Buda e, em múltiplas vezes, achei todo o seu discurso um pouco exagerado – propósitos como purificar a mente ou ultimar o sofrimento eram algumas das ideias transmitidas por Goenka que não se perfilam tanto com a minha forma de viver. Ainda assim, tentei sempre manter uma mente aberta e absorver toda a informação que me era passada.

Depois desta aula, por volta das nove horas da noite, dávamos então o dia por encerrado e íamos para o dormitório. Meia hora depois, as luzes apagavam-se. Menos um dia. Tinha sempre alguma dificuldade em adormecer, por não me sentir suficientemente cansada para querer dormir. Embora já estivesse acordada desde as quatro e meia da manhã, não tinha feito nada durante todo o dia além de tentar atingir o nirvana, lavar a roupa e fazer o trajeto ala de meditação – dormitório umas trezentas vezes. Numa outra situação em que tivesse acordado tão cedo, cairia redonda na cama àquela hora. De facto, comecei a reparar que as minhas necessidades básicas enquanto ser vivo diminuíram bruscamente – bebia muito menos água que o normal e não sentia sede, não tinha necessidade de dormir tantas horas, comia metade da comida que geralmente como e não sentia fome. As minhas necessidades energéticas caíram a pique e estava praticamente a viver em nível basal.

O trajeto que ligava a ala de meditação ao dormitório e que percorríamos dezenas de vezes por dia

Os dias foram passando e depois dos primeiros três dias já estava mais habituada ao retiro. Porém, acho que nunca me habituei por completo àquelas condições. Todos os dias dava por mim a contar quantas horas faltavam para aquele dia acabar e quantos dias faltavam para aquele suplício terminar. Todos os dias de manhã, às cinco horas, quando chegávamos à ala de meditação, tínhamos uma grande folha, onde constava o dia do retiro “Day three”, “Day four”, “Day five”, e por aí fora. Durante um único dia devia olhar para aquela folha um milhão de vezes – chegava a ser doloroso ter de levar constantemente com a nossa sentença. Cada vez que olhava contava instantaneamente quantos dias faltavam até chegar ao dia onze, dia em que iríamos embora. Na placa de madeira que estava junto à minha cama, e que separava o meu “quarto” do seguinte, tinha, inclusive, aquelas marcas com pauzinhos a contar os dias, tal e qual os presos na prisão, cravadas por quem já lá esteve.

À entrada da ala de meditação, o dia do retiro em que estávamos, acompanhada por uma frase “inspiradora”
O nosso horário

Ao quarto dia, acordamos com menos cinco pessoas no grupo – quatro rapazes, que ficavam sempre na última fila do lado dos rapazes, e uma rapariga, que se sentava na minha diagonal. Quando andava a pesquisar sobre o retiro, li inúmeras vezes que não era permitido desistir, já que eles ficavam com o nosso passaporte. Teríamos forçosamente de permanecer no centro durante os dez dias. E este foi um fator que me assustou e que me fez adiar a minha inscrição durante algum tempo. A verdade é que não era bem assim, não era completamente proibido, tal como vim a verificar no quarto dia. Desistir de um retiro vipassana não é imediato e, para tal, não basta apenas querer. Isto porque o professor tende sempre a oferecer alguma resistência aos pedidos de desistência – é normal querer desistir, toda a gente em algum momento pensa em fazê-lo, e se toda a gente o fizesse quando quisesse, quase ninguém chegaria ao fim do curso. Neste sentido, normalmente o professor tenta manter o aluno no por mais um ou dois dias, na tentativa de que este se alinhe com o propósito do retiro.

Os dias foram passando e eu fui tentando, dentro das minhas capacidades, melhorar a minha técnica de meditação. Como era evidente, muitas vezes a minha mente divagava e levava-me para outros mares. Numa primeira fase fui assolada pelos pensamentos de morte e por uma enorme resistência em aceitar aquelas condições, mas, depois disto e a partir do quarto dia, entrei numa segunda etapa desta experiência em que vivi toda a minha vida de novo e em que os pensamentos que vieram à tona foram sobretudo memórias. Primeiro as más, depois as boas. Primeiro as mais importantes, depois umas mais insignificantes. Vivi de novo todos os episódios fraturantes da minha vida, todas as situações que me magoaram e que não hei de esquecer. Vivi-as com tal intensidade como no dia em que aconteceram e senti precisamente a mesma dor e o mesmo sofrimento, com tal fidelidade como se estivesse a viajar no tempo. Mas com a adjuvante de tal experiência durar muito pouco tempo – enquanto me estava a recordar, e enquanto sentia de novo essa dor, parecia demorar uma eternidade, mas, de repente, num ápice, o sentimento ia embora, dissipava-se e, quando olhava para o relógio da ala de meditação, reparava que tinham passado apenas cinco minutos.

Ao longo destes dias revi tudo de novo – primeiro episódios mais recentes e que ainda não estavam totalmente digeridos, e depois situações mais antigas, algumas até da minha infância. Pequenas discussões com os meus pais aqui e ali que talvez me tenham marcado mais do que aquilo que gostaria, e que sejam até responsáveis por alguns traços de personalidade. Chorei muito, é certo, mas também digeri muita coisa e arrumei muitos assuntos que até então não tinha querido enfrentar. Por outras palavras, limpei a mente e deixei tudo bem claro dentro de mim. E realmente isto só foi possível porque estive totalmente isolada e abstraída de tudo o que nos distrai, de tudo o que nos ocupa. Só assim, no silêncio absoluto, depois de vários dias, e depois de ter esperneado e de ter tentado desistir, é que as águas se acalmaram dentro de mim e me deixaram ver o que é que estava além do óbvio. E fi-lo não por opção própria, mas porque fui vítima do tempo e do vazio. Estive treze horas por dia, durante dez dias, sentada, de olhos fechados. No final, foram cento e trinta horas a ser constantemente invadida por memórias e pensamentos. Clarear tudo não foi uma opção, mas sim a solução para não enlouquecer. E, neste sentido, entendo perfeitamente a razão para este retiro durar precisamente dez dias – dez dias é o mínimo de tempo necessário para conseguirmos nos habituar, dentro do possível, àquelas condições. Isto é, para passar por aquele desconforto inicial, por aquela resistência primária, para depois encontrarmos uma posição de equilíbrio que nos permita olhar para dentro e refletir.

Durante estes dias tive aquele tempo que por vezes todos precisamos, mas que nunca arranjamos. Convencemo-nos que não temos tempo para isso, que a vida não para, que ter tempo é um luxo. Mas julgo que o verdadeiro motivo para nunca arranjarmos esse tempo é o medo. O medo de ficarmos sozinhos, connosco próprios, o medo daquilo que vamos encontrar, o medo de lidar com certos assuntos, o medo de dar voz aos nossos fantasmas. Pois, afinal, todos temos gatos pretos no armário. Escolher não lhes dar voz é também uma opção e é tão válida como a contrária, é uma decisão que cabe a cada um e que não critico. Viver a vida que preferimos é também um direito nosso.

Contudo, não foram só memórias predominantemente más a surgir, tive também algumas boas e muitas delas triviais. Lembrei-me de pessoas que conheci há dez anos e que permaneceram na minha vida durante dois ou três dias, pessoas das quais já não me lembrava há anos, de algumas até já nem sabia o nome. Curiosamente, recordei pela primeira vez alguns episódios da minha infância, situações que não sabia que tinham acontecido ou, pelo menos, das quais já não me lembrava. Memórias que nunca tinha tido. A dada altura questionei-me se realmente estava a aceder a memórias antigas, ou se estava, pura e simplesmente, a inventar –  Será que, com o vazio que me assombrava, consegui aceder a memórias antigas, guardadas no meu inconsciente? Ou será que a minha mente estava a criar histórias novas para me entreter, para evitar sucumbir à solidão? Depois de ter tentado levar-me a desistir, com os pensamentos sobre a morte, agora poderia estar a tentar distrair-me com algo novo, para que o tempo passasse mais rápido. Até hoje não sei se essas memórias eram ou não reais e também já as esqueci. Talvez se tivesse podido escrevê-las no momento, pudesse hoje refletir sobre elas e até perguntar aos meus pais se se lembravam de algo. Mas limparam-se da minha mente uns dias depois. Não restou nada.

Durante as minhas pesquisas sobre o vipassana encontrei muitos relatos de pessoas que experienciaram momentos de total plenitude e contentamento durante o curso. É claro que, de entre todos os relatos, há inúmeras variações e tudo isto é altamente imprevisível, mas grande parte das experiências apontavam para um certo estado de expansão mental em que as dúvidas e as incertezas intrinsecamente humanas perdiam razão de existir. Um estado em que tudo se encaixa e em que deixa de haver dúvidas e objeções. Um estado de harmonia e paz entre o homem, a natureza, o mundo e o universo – em que percebemos porque é que os pássaros voam, porque é que os rios correm para o mar e porque é que somos tão racionais e mesquinhos. Em que compreendemos o porquê de existir guerra, fome, injustiças e morte – um estado em que tudo encaixa na perfeição, em que tudo se alinha e ganha um propósito, uma razão. Um estado em que a consciência se expande para lá dos limites racionais. Porém, este súbito estado de consciência é mais célere que um feixe de luz, e escapa-se de nós num ápice, sem que o consigamos agarrar – de um momento para o outro, voltamos para a nossa insignificante condição humana, marcada pela insatisfação, incompreensão e pela busca de algo que, na maioria das vezes, nem sabemos o que é. Por volta do dia cinco e do dia seis, nos melhores dias deste retiro em termos de equilíbrio mental, consegui sentir este estado de plenitude e contentamento. Contudo, não me surpreendi nem me deixei enaltecer por ele, pois já o havia sentido antes, durante as meditações diárias que punha em prática aqui e ali. Na verdade, é-me, inclusive, muito mais fácil aceder a este estado meditativo quando estou a fazer uma meditação normal, no decorrer de um dia banal, do que quando estive no curso. Talvez por no retiro ter oferecido mais barreiras, por ter estado grande parte do tempo irrequieta e impaciente.

Ao dia sete padeci, literalmente, de gula. A nossa alimentação era, além de vegetariana, sempre a mesma coisa – sopa de lentilhas com vegetais salteados e arroz branco. Esta falta de variedade tinha dois motivos para existir – em primeiro era uma forma de tornar os nossos dias o mais iguais possível, com o mínimo de variações/distrações; e em segundo lugar, era também uma forma de impedir que tirássemos algum prazer momentâneo do ato de comer. A ideia do retiro era também abstrairmo-nos dos prazeres mundanos. Além disso, e apesar de eu nunca ter sentido fome, fazíamos apenas duas refeições completas por dia. Por outras palavras, comíamos precisamente a quantidade que precisávamos. Nem mais, nem menos. Perdi quatro quilos em dez dias.

Neste sentido, dei por mim a ser totalmente invadida por uma excessiva vontade de comer tudo e mais alguma coisa. Pela minha cabeça passavam os mais diversos pratos e alimentos – francesinha, chocolates, arroz de tomate, pataniscas, gomas, rissóis, espetadas, arroz de favas, massas, sumos, pizzas, hambúrgueres, frango no churrasco, sardinhas, caldo verde, broa de milho, pão com manteiga, bacalhau com natas, croissant, enfim. Eu desejava tanto, mas tanto poder comer tudo isto, que era capaz de fazer qualquer coisa para poder ter alguma destas coisas. Dava por mim, a meio da meditação, a imaginar-me a comer arroz de feijão com filetes de pescada, ou um enorme crepe cheio de chocolate. Tentava, a todo o custo, não permitir que estes pensamentos se expandissem, mas quanto mais eu tentava, mais eu desejava poder comer. Acho que nunca senti tanta gula na vida como nestes dias, ao ponto de  extravasar os limites e prevaricar – repentinamente, dei por mim a agarrar num bloco de notas que tinha guardado no fundo da mochila e que me tinha esquecido de entregar no primeiro dia e fiz uma lista de todos as coisas que queria comer quando chegasse a Portugal. Estava na minha cama a escrever, com o cobertor por cima da cabeça, quando uma das responsáveis passou e quase me apanhou em flagrante. Desisti imediatamente da ideia e arrumei o bloco de novo na mochila – era o que mais me faltava ser expulsa de um retiro de meditação por andar a pensar em frango no churrasco. Cometi a minha primeira e única falta em todo o retiro, escrever. Não cumpri todas as regras do curso por uma estúpida lista de comida, ridículo!

Curiosamente, durante estes dias, desejei também comer algumas coisas que não gosto como arroz de pato e lanche misto. Eu não gosto de queijo, nem de fiambre, nem de pato – por que raio desejei comer algo que detesto? O que é que isto significava? Estaria a minha mente, novamente, a pregar-me uma rasteira, ao tentar aliciar-me com algo que eu não podia ter ali? Na tentativa de me desencaminhar e de me afastar do propósito do curso? Não sei, não sei se este súbito e incontrolável desejo por comida foi realmente mais um embuste por parte da minha mente e na verdade tentei não dar grande aso a esta possibilidade, sob pena de ficar obcecada em tentar procurar razões e motivos para todas as minhas vontades e pensamentos.

Foi também ao dia sete que, pela primeira vez, fui ter com o professor. Durante a pausa da hora de almoço, entre as onze e as treze horas, podíamos falar com o professor para tirar alguma dúvida ou comunicar algum problema. Embora já estivéssemos no dia sete, quase na fase final do curso, senti que a minha mente continuava a divagar mais do que aquilo que eu gostaria durante as meditações. Por muito que tentasse, não conseguia prolongar a minha concentração por mais do que dez ou quinze minutos. Além disso, não me parecia que estivesse a evoluir quanto à minha capacidade de concentração, além daquela que já tinha antes de lá chegar. Com tantas horas de meditação, não deveria melhorar a minha capacidade de foco, dia após dia? A par disso, as dores nos joelhos, por estar sempre na mesma posição, estavam a tornar-se insuportáveis e eram uma das causas da minha constante desatenção. Chegava a fazer várias pausas ao longo do dia, mais do que a maioria das minhas colegas, apenas para vir cá fora esticar as pernas e aliviar as dores. Assim, e já que o professor estava ali para isso, decidi explicar-lhe a minha situação.

– Quando a mente divaga, demoras menos de cinco minutos e ter consciência disso? – perguntou-me o professor, depois de lhe ter exposto o meu problema.

– Sim, muito menos do que isso – respondi.

– Então é normal. Continua a praticar.

– E as dores nos joelhos? São insuportáveis.

– Aceita a dor, ela vai acabar por passar. Podes sair – respondeu-me.

E assim saí da ala de meditação, com a sensação de que o professor não tinha entendido o meu problema nem me tinha ajudado em nada. Nos discursos do Goenka, à noite, éramos incentivados a aceitar a dor, a não reagir a ela, a aprender a observá-la, pois só assim iríamos erradicar o sofrimento e blablabla, todas estas tretas da espiritualidade. Aceitar a dor é não só fonte de sofrimento, como é o oposto à forma como estamos habituados a comportarmo-nos – se nos dói os pés por estarmos há muito tempo de pé, temos tendência para nos sentarmos; se nos dói as pernas por estarmos muito tempos sentados, mudamos de posição; se nos dói a barriga porque sentimos fome, procuramos alimento; se nos dói a cabeça por estarmos cansados, deitamos a cabeça e repousamos. Tudo isto são comportamentos inatos e instintivos, que respondem a necessidades básicas. Ora, aguentar a dor é não só uma atitude contranatural como é altamente dolorosa. É fazer sacrifício.

É certo que Goenka prometia que, se fossemos capazes de ignorar a dor, ela cessaria espontaneamente, sem termos de reagir perante ela, o que é uma proposta aliciante. Além disso, tempo era algo que não me faltava pelo que, decidi tentar aguentar a dor o máximo que me fosse possível. E assim sentei-me, uma vez mais, por entre as dezenas de almofadas que tinha no meu lugar junto à parede e fechei os olhos, consciente de que só os voltaria a abrir quando fosse capaz de exterminar a dor. Queria ter esse experiência. Cerca de quinze minutos depois, entre pensamentos e reflexões triviais, comecei a sentir a dor a surgir nos meus joelhos. Primeiro timidamente, só por uns leves segundos e depois, com o tempo, vi-a ganhar dimensão, tornando-se cada vez mais intensa e prolongada. À medida que fui observando a progressão da dor nos meus joelhos, fui sentindo cada vez mais a necessidade de mudar a posição, de modo a aliviar o desconforto que sentia. Mas não o fiz. Quando a dor começou a tornar-se de tal forma violenta, deixei de a observar, deixei de me focar nela e decidi concentrar-me noutra coisa completamente diferente. E já que estava com uma gula desmedida, comecei a imaginar-me a comer um mega hambúrguer cheio de molhos, com um ovo estrelado e batatas fritas, numa qualquer esplanada tuga, rodeada de cerveja e amigos – tentei, a todo o custo tirar algum prazer deste pensamento, na tentativa de me olvidar da dor que sentia em cada uma das minhas células, em cada um dos meus átomos que incessantemente me suplicavam por alguma piedade. A dor crescia em mim e dos joelhos passou para as pernas e para os pés, tornando-se cada vez mais insuportável. Mas eu estava concentrada no meu propósito – afinal, o que de mal poderia acontecer em aguentar a dor até ao máximo do limite humano? Não sei quanto tempo passou desde que a dor começou, não sei se passaram dois minutos ou vinte. Já tinha perdido a noção da passagem do tempo quando, repentinamente, a dor que outrora me aniquilava pura e simplesmente cessou. Assim, num ápice. De um momento para o outro deixei de sentir completamente qualquer sinal de dor no corpo. Queria abrir os olhos e certificar-me que tudo aquilo era real, queria olhar para os meus joelhos e comprovar que eles ainda estavam ali e que já não doíam, mas fiz um esforço e mantive-me quieta, imóvel, com os olhos cerrados, voltada para a minha mente. E assim, num ápice, ainda mais rápido do que o anterior, a dor voltou! De um momento para o outro, fui novamente invadida por uma dor completamente insuportável que, num ato totalmente instintivo, me obrigou a descruzar as pernas e a esticá-las. Tinha provado a premissa de Goenka e do meu professor. Era verdade que se aceitássemos a dor e não reagíssemos a ela, iríamos acabar com ela e assim cessar o sofrimento. Mas nenhum dos dois me disse que, uns segundos depois, ela voltaria mais forte do que nunca.

A partir do dia oito a minha exagerada vontade de comer passou por completo. Não só deixei de pensar em chocolates e francesinhas, como perdi por completo o apetite. Já estava de tal forma enjoada de comer sempre a mesma comida que, durante os últimos três dias deste retiro, comi apenas porque tinha de ser. Comi precisamente o mínimo necessário para não padecer, por pura necessidade fisiológica. Se as minhas necessidades biológicas já estavam surpreendentemente baixas, mais baixas ainda ficaram nestes últimos dias.

Foi também por esta altura, na reta final do retiro, que entrei na terceira fase desta experiência – depois da fase dos pensamentos de morte e depois de reviver a minha vida toda mentalmente, dei por mim a cambalear entre um estado de tristeza e apatia, e um estado de ansiedade e inquietação. Pensar que estamos no dia oito de dez faz-nos imediatamente assumir que estamos quase a chegar ao fim. E estava. Quase. Porque na manhã do dia oito ainda tinha três dias inteiros pela frente, até à manhã do dia onze, altura em que seria liberta para o mundo. Ora, três dias são pouco menos de um terço do tempo total. Vistas assim as coisas, não estava tão próximo do fim como pensara inicialmente.

Ainda assim, a minha mente já estava novamente desalinhada e já só pensava no futuro – quer no futuro próximo, no que é que ia fazer quando saísse dali, quer num futuro mais distante, nomeadamente sobre o que fazer com a minha vida quando chegasse a Portugal. Se na fase anterior estava voltada para o passado, nesta estava de olhos postos no futuro – parecia não haver meio de me manter concentrada no presente. Estes pensamentos fizeram-se acompanhar, como é evidente, por uma sensação de ansiedade. Se já contava as horas e os dias para chegar ao fim, nesta última fase contava muitas mais vezes, até de uma forma um pouco obsessiva. Estava de tal forma ansiosa que já não suportava o som do gongo e, cada vez que este tocava, era como se o sentisse tocar dentro da minha cabeça. Ver aquela placa a dizer “Day eight”, era quase como já estar lá fora. E se até então ainda não tinha desistido, também não ia ser agora que ia desistir.

Também de manhã, durante a primeira meditação, às cinco horas, voltei a adormecer, tal e qual como nos primeiros dias. Embora não tivesse tanto sono como no início, já não tinha motivação nenhuma e já estava cansada de tudo aquilo. Acabava sempre por desistir da meditação, trazer os joelhos ao peito, deitar a cabeça e adormecer. Por vezes acordava, subitamente, e saltava do sonho para a realidade num instante – isto acompanhado por uma confusão mental de não saber em que realidade estou, seguida da constatação de que, afinal, ainda estou ali. Ainda estou no retiro. Ainda estou só no dia nove. Ainda tenho de aguentar mais. Sentia por vezes um certo desespero, assistido por um desalento. Só queria ir embora.

Lembrei-me do que aquele jovem dinamarquês me dissera sobre o vipassana há três meses, quando nos cruzamos no lago Inle, no Myanmar – “Se quiseres praticar o bem ou o mal, não podes. Durante dez dias tu só existes”. E era verdade, eu descera ao nível mais elementar da existência humana, pura e simplesmente eu só existia. Eu só existia.

E eis que chegamos ao dia dez. Todas nós acordamos de manhã sem saber o que esperar – afinal, o derradeiro dia tinha finalmente chegado. Sabíamos que iria ser diferente, que iríamos poder voltar a falar uns com os outros, apesar de só irmos embora no dia onze, mas não sabíamos quando é que poderíamos começar a falar. Nunca foi tão fácil acordar de manhã como neste dia, tal era a excitação que sentia. Passei o tempo todo, desde as quatro e meia da manhã, em estado de alerta, à espera das indicações de que poderia voltar a falar, de que estava livre daquela prisão interior. Mas o dia parecia correr normalmente e, depois da primeira meditação do dia, o gongo tocou e fomos todas tomar o pequeno-almoço, em silêncio, tal como nos nove dias anteriores. Depois da pausa da manhã, onde continuamos a cumprir o silêncio nobre, regressamos à ala de meditação para as três horas de meditação matinal. Mas, depois da primeira hora, o professor deu-nos algumas indicações que não consegui perceber e disse que podíamos regressar ao nosso quarto, julguei que para continuar a meditar.

Foi no caminho para o dormitório que uma rapariga me perguntou baixinho se já podíamos falar. Disse-lhe que não sabia e nisto começamos a burburinhar. A nós juntou-se a Pauline, que já não aguentava nem mais um segundo de boca calada. Uma das responsáveis, percebendo o bulício que se desenrolava, veio avisar-nos de que já poderíamos comunicar – o silêncio nobre tinha terminado.

Éramos dezassete raparias e durante os últimos dez dias vivemos juntas – tomamos o pequeno-almoço juntas, lavamos a loiça juntas, estendemos a roupa juntas, caminhamos para a ala de meditação juntas e lavamos os dentes juntas. Durante este tempo, cruzamos olhares mais do que uma centena de vezes e, na falta de algo em que pensar, observamos os comportamentos, a maneira de estar e as reações umas das outras, vezes sem conta. Tudo isto sem nunca sabermos nada umas das outras – quem eram, de onde eram e porque é que estavam ali. Foi engraçado poder dar um nome e um contexto a cada uma daqueles rostos que já faziam parte do nosso quotidiano. Todas nós tínhamos construído histórias fictícias na nossa cabeça, sobre a identidade umas das outras. Ninguém achava que eu era portuguesa e eu também não calculava que a loirinha da cama da frente fosse alemã ou que a moça que meditava ao meu lado fosse espanhola.

O sinal que dividia a área das mulheres da dos homens

Durante estas duas últimas horas de meditação, antes da hora de almoço, deveríamos ter meditado no quarto, apesar de já podermos falar. Mas ninguém meditou. Aliás, ninguém meditou mais durante o resto do dia. Depois do almoço, soubemos que durante a tarde poderíamos recolher os pertences que tínhamos deixado no cacifo e que haveria uma exposição de livros sobre o retiro, caso alguém quisesse comprar. Os retiros vipassana são totalmente gratuitos, mas há a possibilidade de fazermos um donativo no final, se quisermos.

Assim que reouve os meus pertences, fiz o meu donativo e comprei dois livros. Depois disto, liguei o telemóvel e voltei a conectar-me ao mundo digital. No meio do turbilhão de experiências que tive durante este tempo, ter ficado sem telemóvel ou sem redes sociais foi o menor dos meus problemas. Nunca senti falta dele e, à semelhança do que aconteceu durante o Projeto Mindfulness ou durante o cruzeiro nas Flores, senti até um certo alívio em estar desconectada. Foi como se me tivessem tirado a pressão de ter de estar a par de tudo e de ter de saber tudo o que se passa no mundo.

Durante o resto do dia, tivemos mais umas horas de meditação, que ignorei completamente e vimos ainda uns documentários sobre o impacto do curso vipassana em prisões indianas. No dia seguinte, voltámos a acordar às quatro e meia da manhã para meditar, tomamos o pequeno-almoço, lavamos a loiça, fizemos as malas, trocamos contactos e saímos porta fora, rumo à liberdade. Assim que saí, meti-me num táxi, com mais três raparigas do retiro, rumo a Kathmandu. Todas estávamos exaustas e a precisar de digerir a situação. Decidi pagar vinte euros por um hotel mais jeitoso, com um quarto privado, onde pudesse relaxar e assimilar o turbilhão de experiências mentais que vivera nos últimos dias.

Passei quase todo o dia no quarto, saindo uma ou outra vez para dar uma voltita por Thamel. Fui até uma farmácia pesar-me, para ter uma ideia das consequências físicas da experiência – estava com quarenta e oito quilos, menos quatro do que o peso inicial. Fui parando numa e noutra esplanada para escrever. Queria transpor em palavras tudo o que tinha acontecido durante estes dias, tudo o que tinha sentido e todos os pensamentos que tive, sob pena de me esquecer de alguns pormenores. Mas ainda estava muito embrenhada na situação e não conseguia ter o distanciamento necessário para conseguir escrever com clareza. Parecia que, de certa forma, ainda estava no retiro. À semelhança do que aconteceu com os meninos que jogavam à bola, também em Thamel voltei a sentir o mesmo – à medida que caminhava por entre as ruelas e olhava para as pessoas à minha volta, sentia que a vida delas estava a acontecer normalmente, ali mesmo à minha frente, com exceção da minha. Todas as pessoas pareciam ir nalguma direção, todas estavam a fazer alguma coisa, algumas conversavam, outras riam, outras tantas corriam, mas todas elas estavam ali, naquela realidade, naquele contexto. E eu, uma vez mais, sentia-me uma espectadora daquela realidade. Não sentia que fazia parte dela. Eu não estava em piloto automático, a ir para aqui ou para ali, fazer isto ou aquilo. Eu estava na posição de observador, para quem a vida estagnou. Demorei umas vinte e quatro horas até me voltar a sentir de novo num ser humano banal que faz coisas banais.

Hoje, vejo que podia ter aproveitado melhor o tempo que estive no retiro. Ofereci demasiadas resistências, criei demasiadas barreiras e não me consegui entregar da forma livre e descomprometida que gostaria. Contudo, é difícil prever e controlar o comportamento humano, principalmente em situações limite, como esta. Por muito que leiamos sobre o assunto e que nos preparemos para o que vamos enfrentar, uma experiência destas é sempre uma caixa negra na medida em que é impossível saber como é que vamos reagir. Independentemente de ser ou não a primeira vez. Uns dias depois do retiro, já em Pokhara, conheci um tipo, o Mathieu, que já tinha feito três vipassanas e que só ainda não fez o quarto porque tinha de esperar pelo menos três meses para se poder inscrever noutro – segundo a sua experiência, o Mathieu conseguiu concentrar-se muito melhor na primeira vez do que na segunda, tendo atingido vários momentos de total entrega e plenitude, como os que já descrevi. No segundo vipassana, sentiu-se mais frustrado e impaciente e não conseguiu atingir nenhum estado meditativo superior. Ou seja, este exemplo mostra que não podemos prever ou condicionar a experiência que vamos ter, mesmo que já a tenhamos experimentado antes. Em parte, porque aquilo que sentimos durante o retiro e a forma como interpretamos aquilo que sentimos depende largamente do nosso estado de espírito naquela altura da nossa vida e dos problemas que estamos a atravessar naquele momento.

Outro exemplo que ilustra esta ideia é o facto de, neste retiro em particular, as trinta pessoas que chegaram ao fim terem descrito experiências completamente diferentes. Todas nós vivemos dez dias empiricamente iguais, ou com muito pouca variação – acordávamos à mesma hora, com o som do mesmo gongo, comíamos a mesma comida e fazíamos as mesmas refeições, no mesmo refeitório, meditávamos as mesmas horas e ouvíamos as mesmas aulas, estávamos expostos às mesmas horas de luz diárias e à mesma temperatura ambiente, naquele mesmo exato lugar. Porém, no dia dez, quando nos foi permitido falar, todos nós relatamos experiências completamente diferentes. Isto leva-me a crer que existe uma espécie de filtro entre a realidade física, empírica e a nossa conceção da realidade. Um filtro entre aquilo que realmente aconteceu e aquilo que nós achamos que aconteceu. Filtro esse que altera a forma como experienciamos e interpretamos as situações e que é subordinado pelas nossas experiências passadas, pelas nossas aprendizagens, pela nossa personalidade e, inclusive, pelo nosso estado de espírito atual. Parece haver uma certa parte da conceção da experiência pessoal que é um produto da nossa interpretação dessa mesma experiência. Contudo, tal significa que aquilo que assumimos como real nunca corresponde, efetivamente, à realidade.

Mais tempo ainda demorei a perceber o que é que tinha retirado de positivo desta experiência. Assim que saí, a primeira coisa que os meus amigos e familiares me perguntaram foi se tinha valido a pena e o que é que eu tinha aprendido com isto. Mas eu não sabia responder, por vários motivos – em primeiro porque eu não tinha um objetivo bem definido quando entrei nesta aventura, eu não estava à procura de nenhuma resposta específica nem parti com nenhuma expectativa; e em segundo porque ainda era muito prematuro para tirar conclusões.

Meditar é treinar o cérebro e, nesta perspetiva, não é muito diferente de treinar um músculo. Os benefícios da prática da meditação surgem ao longo do tempo, com o treino regular. Imaginemos um atleta que, durante dez dias, fez um estágio intensivo dentro da sua área desportiva. No final, se lhe perguntarmos em que é que o estágio melhorou a sua condição física, será muito difícil ele saber responder com precisão. Durante aqueles dias, ele treinou e deu o melhor de si sem saber se no final melhoraria mais ao nível da velocidade ou da resistência. Mas talvez duas ou três semanas depois de regressar do estágio já seja possível observar as melhorias, e talvez já seja possível dizer que foi neste e naquele aspeto que o jovem atleta melhorou mais. Isto para dizer que, com o cérebro e em particular com este retiro, acontece a mesma coisa. Durante cento e trinta horas treinei intensamente a minha mente no sentido de aumentar a sua capacidade de foco e concentração, sem saber se estava a conseguir e, caso conseguisse, sem saber que repercussões é que isso teria na minha vida diária. Foi necessário algum tempo – alguns meses – depois de ter saído do retiro para ter perceção dos benefícios.

É evidente que o primeiro e mais imediato benefício tem a ver com a superação pessoal – a sensação de satisfação por saber que consegui cumprir o desafio a que me propus. Neste caso, este foi inclusive o desafio mais duro a que alguma vez me propus. Saí de lá mais forte, com um arcabouço mais duro e resistente, capaz de suportar uma ou outra mazela sem me deixar melindrar.

Em segundo, passei a criar um distanciamento muito maior com os meus pensamentos, o que é útil, principalmente em momentos de maior stress e ansiedade, em que somos assaltados por um loop de pensamentos, muitos deles irracionais e negativos. Consigo facilmente, e de forma quase instantânea, ganhar consciência dos pensamentos que estou a ter e afastar-me deles. Passo para uma posição de espectadora, onde observo os pensamentos a serem produzidos pela minha mente. A principal vantagem desta capacidade é retirar intensidade aos pensamentos, isto é, relativizá-los e, consequentemente, condicionar as emoções que esses pensamentos desencadeiam em mim.

Em terceiro, sinto que passei a compreender-me melhor em certos aspetos e tornei-me mais empática para comigo mesmo – ter revivido toda a minha vida fez-me relembrar certos episódios que estavam esquecidos no passado, que me fizeram perceber porque é que tenho certas características e porque é que às vezes ajo mais de certa maneira. Ainda não sou a pessoa que gostaria de ser, mas percebo melhor porque é que sou como sou. Culpo-me menos, não me julgo tanto e estou mais apaziguada com os meus defeitos e as minhas fraquezas. Tanto o segundo como o terceiro benefício fazem parte do autoconhecimento.

Em quarto e último lugar, sinto que melhorei a minha capacidade em manter-me concentrada. Num mundo tão saturado de informação e de novos inputs consigo, com maior facilidade, desligar-me do mundo que me rodeia e colocar todo o meu esforço e dedicação num e num único trabalho, sem estar constantemente a ser invadida por pensamentos que me afastam daquela tarefa. Em termos de meditação, consigo hoje estar sentada por mais de trinta minutos sem me doer os joelhos, em vez dos anteriores quinze. Consigo, hoje, fechar os olhos e entrar em meditação por vinte ou trinta minutos, sem dar conta do tempo a passar.

É evidente que o facto de ter continuado a minha prática depois desta experiência ajudou a conseguir estes efeitos. E, na verdade, não posso afirmar com exatidão que todos os benefícios que recolhi provieram única e exclusivamente dos dez dias que lá passei. Foram, provavelmente, benefícios colhidos por uma prática consistente, catalisados por uma imersiva experiência de total isolamento. E claro, por toda a experiência da viagem em si.

3 comentários em “10 dias de isolamento – o relato completo da minha experiência num retiro Vipassana”

  1. Olá Patrícia,

    Lembro-me perfeitamente de quando anunciaste que ias fazer o retiro. Na altura, até te enviei uma mensagem a dizer “bom, vais pôr os teus seguidores a pesquisarem o que é Vipassana” 🙂 e lembro-me que me lembrei de ti várias vezes ao longo desses dez dias, a pensar como estaria a correr.
    Quando foste à Metamorfose falar sobre esta experiência, deu para perceber um bocadinho o que tinhas passado, mas este relato é realmente esclarecedor 🙂

    Gostei de te ler de novo.

    Um beijinho

    1. Patrícia Carvalho

      Olá Cátia 🙂 Lembro-me perfeitamente desse momento, em que comecei a falar em vipassana como se toda a gente soubesse do que estava a falar. Muito obrigado pelo feedback positivo e por teres acompanhado esta parte da minha vida, fico muito feliz 🙂 Um beijinho

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